HomeTemasValores associados à ciência e à genética humana

Valores associados à ciência e à genética humana

Recentemente a genética tem sido vista como um campo de conhecimento que suscita muitas questões científicas, sociais, éticas, econômicas e políticas, sobretudo desde a conclusão final do Programa Genoma Humano em 2003, dotando-a de uma visibilidade pública pautada ora por opiniões e inquietações positivas ou negativas decorrentes dos desenvolvimentos científicos, promessas biomédicas e perigos bioéticos a ela associados. Tal crescente penetração da genômica na cultura contemporânea, leva-nos a atentar sobre certa dimensão moral associada à genética e a história de um conjunto de valores expressos pelos geneticistas e que, de alguma forma, nos ajudam a compreender a sua repercussão pública na atualidade.

"Já existe em P. Alegre ambiente científico na expressão pura do termo" - Recorte do jornal Diário de Notícias sobre o retorno de Salzano dos EUA

Ao tratar aqui nas narrativas de valores associados à ciência, não nos referimos apenas a uma tentativa de nelas procurar o “ethos mertoniano” (em referência ao ethos da ciência do sociólogo americano Robert Merton), ou seja, imperativos ético-normativos que, de modo prescritivo e genérico, devem conformar uma obrigação moral para a prática de todos os cientistas: conhecimento público, produzido de forma colaborativa, universal, desinteressada, original e passível de crítica entre os pares. Várias falas dos cientistas são carregadas desses valores, que fazem parte dos entendimentos sobre a relevância dos campos de atuação em pesquisa genética para a sociedade. As falas também expressam as normativas atualizadas para o contexto tecnocientífico da segunda metade do século XX, com um conhecimento que é instrumentalizado na interação entre ciência-mercado-governos, então valorado como uma propriedade, que seria produzido para dar respostas técnicas específicas, gerido de maneira autoritária e hierárquica, encomendado e cada vez mais especializado.

Em contrapartida, propomos uma escuta para como os geneticistas atuantes no Departamento de Genética da UFRGS expressam e partilham de valores associados à ciência que acabam por conferir ao grupo certa identidade coletiva. Apesar de cada entrevista denotar histórias orais que remetem a experiências, estados mentais e visões ideológicas individuais, trata-se de abordá-las de forma transversal, para captar uma rede de valores, afetos, tradições, convenções compartilhadas entre os pesquisadores sobre: o que é ciência ou ser cientista (geneticista), o que é (e como) fazer pesquisa em genética humana, quais as inspirações e legados dos pesquisadores do Departamento para o desenvolvimento das pesquisas, qual o papel da genética humana para a sociedade – para esse caso, por exemplo, Francisco Salzano chega a citar o acesso à tecnologia genética como um direito.

Recorte o Jornal Zero Hora com opinião de Salzano sobre pesquisas em embriões

Por isso, a presente proposta aproxima-se mais a uma leitura das entrevistas à luz da ideia de economias morais da ciência. Longe de referir-se a dinheiro, mercado ou recursos materiais, elas são uma rede interativa de valores partilhados que integram o cerne da ciência, servem de inspiração e referência para escolhas de temas e procedimentos de pesquisa de um grupo, ajudam a definir o que é uma evidência científica e como explicá-las. Elas são determinadas em interação com a cultura e, com isso, historicamente construídas, transformadas e desfeitas ao longo do tempo.

No plano individual, cada narrador tece apreciações pessoais sobre a ciência e o que é ser cientista, frequentemente associadas à racionalidade e que exigiria, estudo, talento e capacidades intelectuais extraordinárias. Maria Cátira Bortolini, por exemplo, chega a referir-se a uma formação familiar que a dotou de “um cérebro preparado para a ciência” e não para explicações de fenômenos de maneira mitológica. Ou que no imaginário sobre ser cientista no seu tempo de estudante era: “cientistas eram astronautas que a NASA tinha”. É comum a vários dos entrevistados a ideia de ser cientista como uma vocação – um “amor à primeira vista” (como afirmado por Salzano), incutida e cultivada desde a infância, por meio do ambiente familiar, e cujo trabalho implica encantamento pela descoberta, dedicação, abnegação e tenacidade. Ciência como vocação também aparece em vários depoimentos associada à iniciação nas pesquisas genéticas.

Mas ainda sobre a escolha da genética humana, o que com frequência salta aos olhos na leitura das falas é a evocação de certo “acaso”, como fator de explicação para o sucesso das trajetórias científicas individuais. A chance de fazer pesquisa em genética humana, para vários dos geneticistas aqui entrevistados, decorreu de uma oportunidade a partir de encontros fortuitos dos então iniciados com seus professores orientadores e pesquisadores colaboradores, os quais dispunham das condições de possibilidade de ordem materiais, financeiras e intelectuais que favoreceram as escolhas individuais de temas de pesquisa em genética humana.

Participação dos geneticistas da UFRGS em evento no Chile, o Santiago Southern Simposium, Janeiro 1996.

Vale chamar a atenção mais uma vez para os depoimentos de Francisco Salzano e a importância atribuída a ele pelos próprios colegas, técnico de laboratório e ex-alunos como aquele que porta um “legado acadêmico” da pesquisa em genética humana no Departamento. Em vários momentos os diferentes pesquisadores referem-se aos “legados” decorrentes dos passos da trajetória renomada de Salzano. Esse legado seria um componente simbólico estruturante do grupo. Mais do que orientador, ele representaria em si um ideal de geneticista, de iniciador e de liderança acadêmica.

É também importante destacarmos valores associados à cultura material das pesquisas desenvolvidas no Departamento. Entendemos que as práticas também são atravessadas por economias morais. O grupo da UFRGS é reconhecido mundialmente, desde os anos 1960, pela colheita e capacidade de fazer circular nas redes transnacionais amostras e dados biológicos. A história das questões éticas relativas a essas práticas será discutida em outra seção. Contudo, é preciso atentar para uma confluência na forma com que alguns dos geneticistas entrevistados pensam o valor das amostras e dados biológicos para sua prática. Mais do que uma latência (ou seja, com potencial para pesquisas futuras) ou relíquias a serem preservadas e usadas com parcimônia (antes que se acabem), percebemos que as amostras biológicas são para os pesquisadores das primeiras gerações “instrumentos” à serviço de um ideal de Ciência (em maiúscula) universal e objetiva, assim, a-situados e desconectados dos sujeitos humanos os quais pertencem. Tal apreciação moral tem consequências epistemológicas para a própria genética humana, pois descontextualiza e desumaniza os modos pelos quais essas amostras e dados biológicos foram produzidos e são usados na pesquisa. As histórias orais aqui apresentadas, pelo contrário, dão a ver as dimensões subjetivas (dos pesquisadores e dos pesquisados) que compõem a própria materialidade da ciência.

Por fim, podemos também observar em vários depoimentos uma tentativa de dotar de valores universais as pesquisas em genética humana para dar-lhes um papel para a sociedade. E é aqui que percebemos o quanto por vezes vários elementos constituintes da economia moral do grupo se chocam com os de outros setores da sociedade - o que Salzano chama de "geneticofobia": no âmbito da ética e nas relações entre os pesquisadores e os sujeitos-objetos, nas concepções sobre a ideia de raça e ancestralidade, e na compreensão sobre a relevância da aplicação e uso dos estudos e informações genéticas sobre a diversidade biológica humana em questões fraturantes para a sociedade como um todo.