00:00:00DENT: Estamos gravando. Hoje é 11 de julho de 2012 [falha na gravação] [Sou
Rosanna Dent, doutoranda na Universidade de Pensilvânia, e eu tenho o prazer de
falar com o Professor Francisco Mauro Salzano. Estamos] na Universidade Rio
Grande do Sul, Instituto de Biociências. Professor Salzano, pode nos contar um
pouco do seu interesse na genética humana e de sua formação acadêmica? Como foi?
SALZANO: Pois é, eu iniciei o processo de investigação científica com a
drosófila. Aliás, a maioria dos pesquisadores da minha geração, de
genética, eles começaram com drosófila devido à influência do professor
Dobzhansky, né?! E... Então, eu estava no final do curso de História Natural.
Chamava História Natural, o curso, aqui na universidade naquela época. Depois
o curso foi extinto, separado a Geologia da Biologia. E eu estava no final do
ano. E eram três anos. E, então, com interesse variado, inclusive mais de
00:02:00literatura, cinema, etc. Mas... não estava dando uma ênfase muito grande ao
curso em si. Mas quando chegou no terceiro ano, eu disse: "bom, daqui a um ano
eu me formo, e tenho pouca informação, pouco... minha formação não está
tão boa assim". Então, nós organizamos um grupo de estudos para estudar. Eu e
mais duas ou três colegas. Para estudar Zoologia. Que era uma das matérias que
a gente tinha pouca informação.
E o professor Antônio Rodrigues Cordeiro, que foi o fundador da genética no
Brasil... no Brasil não, aqui no Rio Grande do Sul, tinha voltado, no final do
ano 50, 1950. Tinha voltado do estágio com o professor Dobzhansky em São Paulo
e montado um laboratório. Era a Faculdade de Filosofia; era uma instituição
que depois desapareceu também. Ele vivia olhando, especulando o que os alunos
estavam fazendo. E ele nos viu estudando. E me convidou para fazer um estágio
no laboratório dele.
00:04:00
Então... como eu sempre digo, o primeiro contato que eu tive com as
drosófilas, da passagem de um frasco para outro, foi impactante. E foi amor à
primeira vista. [risos]. Então, desde aquela época, eu fiquei lá como
colaborador voluntário. E no final do ano, quando eu me formei, havia a
possibilidade de uma bolsa de estudos em São Paulo. Então, eu passei o ano de
51 lá em São Paulo, especializando em genética, também em drosófila.
Aí, na volta, nós tínhamos um apoio grande do diretor da Faculdade de
Filosofia, que era o professor Bernardo Geisel. E ai, pouco tempo depois de eu
ter voltado -eu fui no início de '50, voltei no início de '51-, e em junho
desse ano, eu consegui uma contratação aqui na universidade. Então... e
00:06:00trabalhando sempre na equipe do professor Cordeiro.
E ai, realizei o meu doutorado à distância na Universidade de São Paulo,
trabalhando aqui, né, lecionando, dando aulas e fazendo a parte de laboratório
aqui. E depois, em 1955, eu defendi a tese em São Paulo. E um dos membros da
banca era realmente o professor Dobzhansky, que estava lá na época. Então,
era muita honra. E ai, havia um projeto de trabalho de um ano do professor
Dobzhansky aqui, em '55-'56. Então, eu não fiz logo o meu pós-doutorado.
Fiquei mais um ano aqui, trabalhando com drosófila.
Mas, então, em 56, eu fiz os primeiros contatos com o professor James Neel para
realizar esse estágio lá no Departamento de Genética Humana em Michigan. E
00:08:00era um momento em que estava em ebulição a questão da genética humana. Antes
disso, ela era considerada um assunto de pouco interesse, porque questões de
estudos genealógicos em doenças raras era o objeto de estudos da genética
humana. E, então, a partir de '56, '57 - exatamente o momento que eu estava
querendo me especializar - estavam surgindo novas técnicas laboratoriais que
tornaram mais atraentes a genética humana para esses estudos de população. E
então, eu passei um ano lá com o Neel. Montamos, então, um projeto de
pesquisa comum. E, aí, o resto é história. [risos]. Íamos trabalhando, como
você pode ver os detalhes, nesse artigo que eu escrevi sobre ele. Foi mais de
uma década de todo um programa de trabalhos comuns, e tal, com troca de
informação, viagens dele para cá, de eu, de mim para os Estados Unidos.
Então, foi um período muito fértil na minha formação.
DENT: Podia descrever um pouco mais o ano que você ficou nos Estados Unidos, a
experiência? Como foi a viagem? Foi com a sua família? O que foi a
00:10:00experiência que você viveu lá nos Estados Unidos? Como foi, para você,
chegar lá?
SALZANO: Pois é... Então, era minha primeira viagem para os Estados Unidos.
Nós viajamos de avião [risos]. E era uma viagem longa. Eram quase 24 horas
para chegar lá, com várias escalas. Esse programa da Fundação Rockefeller,
eles faziam questão que antes da chegada lá no local de trabalho, se passasse
dois, três dias em Nova York, lá na Fundação para discutir questões de
adaptação aos Estados Unidos. E enfim, montar, ficar mais adaptado à vida nos
Estados Unidos e também proporcionar uma primeira discussão com o pessoal da fundação.
Então, nós chegamos à Nova York. Era eu, a minha esposa, e um filho de um ano
e pouco de idade. Não, um pouco mais. '53... Dois, três anos de idade. Então,
lógico, foi uma experiência interessante. O Neel me recebeu lá no escritório
dele, me deu as informações necessárias. E, posteriormente, a gente viajou de
00:12:00trem para Ann Arbor.
E a minha adaptação lá foi facilitada porque um amigo meu, o professor Newton
Freire-Maia, ele já estava lá. Já estava lá há seis meses, também,
trabalhando com James Neel. Então, ele já foi me esperar na estação de Ann
Arbor, me levou e tinha uma casa de três andares, de madeira, e ele estava
morando no primeiro andar. E no andar térreo, a pessoa que alugava estava
saindo. Então, eu fui justamente morar no mesmo prédio que ele, já com todas
as instalações. Era um apartamento mobiliado. Tudo da melhor maneira possível
para adaptação. Então, esse processo foi muito facilitado por isso.
Claro, aconteceram coisas diversas, durante um tempo. O filhinho, o meu filho
não se adaptou muito bem no início [risos]. Mas no fim deu tudo certo e houve
00:14:00alguns episódios interessantes. Um deles é que Ann Arbor é frio, "bota frio
nisso", como diz aqui no Brasil... E a casa, então, tinha um sistema de
calefação, mas que não atingia o banheiro. Então, um dia lá no inverno, eu
resolvi fechar a porta que ligava o nosso quarto com o banheiro e aí congelou
todos os canos de água do prédio inteiro. [risos]. E, aí, "um auê grande",
como nós dizemos aqui. O Landlord lá, que era o responsável pela manutenção
do edifício: "como que você não vê isso aí?" Ele disse: "Ah, South Americans".
DENT: [risos]
SALZANO: Eu sei que no dia seguinte botaram uma série de aquecedores ao longo
da parede. E, aí, foi um dia de muita expectativa. Mas no fim descongelou, não
arrebentou nenhum tubo. [risos]. Nenhum cano. Então, foi um momento dramático
na minha experiência nos Estados Unidos.
Bom, também era muito comum, era de praxe da Fundação Rockefeller, depois,
00:16:00fazer uma viagem de um mês em diferentes centros de pesquisa dos Estados Unidos
e do Canadá. Então, eu fiz essa volta aí, visitando diversos outros grupos,
que proporcionava uma ideia global sobre o estado - e de primeira mão- do
estado da ciência nos principais centros de pesquisa lá dos Estados Unidos e
do Canadá. E quando eu voltei foi muito útil isso.
DENT: E o que foi que você viu, neste tour dos laboratórios, que foram as
impressões, as ideais que você levou?
SALZANO: Pois é, um dos momentos mais dramáticos também foi que, na época,
-vê como são, como progride a ciência- na época, estava em discussão se o
número cromossômico, de cromossomos do homem era 48 ou 46. [risada discreta].
E um dos poucos centros que na época ainda estava trabalhando em citogenética
humana era em Baltimore. E, então, lá no laboratório...
DENT: De Johns Hopkins?
SALZANO: Johns Hopkins, é. Eu disse: "muito bem. Eu quero ver, por mim mesmo,
00:18:00se o número é 46 ou 48" [risos]. Então, eu fui lá para o microscópio... me
deram um microscópio. Eu contei e era 46 mesmo. [risos]. Dr. Bently Glass, quem
trabalhava lá.
DENT: E lembra de outras coisas que viu no tour, do mês?
SALZANO: Pois esse foi a questão mais importante. Mas eu estive também em
Toronto, no Canadá,com a professora Norma Ford Walker, que trabalhava em
genética médica, mesmo; em Madison, Wisconsin, que era o segundo... Eram os
dois grandes grupos de investigação em genética humana nos Estados Unidos, na
época. Era Ann Arbor e Wisconsin. E em Wisconsin, eu também estive com o
professor James [Franklin] Crow, que era então o chefe do laboratório, e que
também tinha começado com drosófila e depois passado para genética humana.
E uma das, um dos momentos também muito interessante foi que estava lá, na
época, o professor Sewall Wright. Sewall Wright é um dos mais importantes
00:20:00geneticistas. É um dos fundadores da genética, tanto clássica, estatística,
matemática, como também da parte da evolução; um dos criadores da Teoria
Sintética da Evolução. E ele, depois de aposentado em outros lugares, foi
para Wisconsin, Madison. E eu já conhecia ele da literatura, então tinha
grande respeito por ele. Aí, falei para o Crow, "será que eu posso falar com o
professor Sewall Wright?". "Lógico. Pode. Pode. Vai lá na sala dele e fala com
ele". "Mas assim, sem mais nem menos?". "É. Pode ir. Não tem problema". Aí,
eu fui lá sem marcar entrevista. Cheguei lá. [Salzano bate à mesa, como que
imitando o som da batida na porta]. "Professor, eu sou do Brasil e queria lhe
conhecer pessoalmente, tal, tal". Ah, estava esperando uma resposta áspera. Mas
não: "ah, muito bem. Venha para cá", e tal, "Nós vamos conversar".
Bom, vamos dizer assim, para simplificar o relato, eu tinha chegado duas horas
da tarde, no início da tarde, e ele ficou contando as coisas dele até às 5
horas... até o fim do expediente. E saímos juntos. Então, foi uma
experiência bem, muito marcante, que a pessoa do calibre dele se dispôs a
00:22:00conversar e tal. Foi ótimo!
DENT: Lembra do que conversaram? Que contou?
SALZANO: Ele começou a detalhar todos os cálculos que ele tinha feito sobre a
herança quantitativa em pelagem de roedores que era um dos assuntos mais
interessantes para ele, era justamente investigar a questão da genética
quantitativa. Porque genética dos caracteres qualitativos, né, já tinha sido
bem estudada a partir da descoberta do Mendel. Mas a parte de como genes de
pequeno efeito atuavam entre si era ainda pouco estudado. Então, ele estudava
com muito detalhe esses pontos, através de cruzamentos com cobaias, com guinea
pigs. E ele ficou me explicando todo aquele negócio dele, os cálculos que se
faziam para obter estimativas sobre o papel da herança e do ambiente nas características.
Tem uma história que contam dele, que eu não sei se é verdade. Que ele estava
dando uma aula e aí ele levava esses guinea pigs para mostrar a pelagem, o
00:24:00padrão da pelagem. E escrevia no quadro as fórmulas que tinham para comparar
essa, peso padrão... No momento que ele tava muito entusiasmado com os
cálculos matemáticos, ele pegou o guinea pig e apagou com o guinea pig o que
ele tinha escrito no quadro negro. [risos]. Então... não sei se é possível.
DENT: Que história! E como foi sua impressão dos Estados Unidos, chegando
desde Brasil nos anos '50?
SALZANO: Ah, não; foi altamente positiva. Lógico, naquela época também havia
o problema da segregação racial era bastante forte ainda. Isso causou um certo
impacto. Mas, em geral, foi de alto nível, digamos. Tanto do ponto de vista do
modo de vida em si dos norte-americanos, como do pessoal que, com o qual a gente
tinha contato, também, na universidade foi muito positivo. Porque muitos deles
se tornaram amigos. A gente manteve contato durante vários anos. Foi muito
positivo, realmente.
DENT: E a experiência familiar, que você foi com a sua esposa e com o seu
00:26:00filho? Como era essa parte da...
SALZANO: Pois é, a minha esposa não, não falava muito bem inglês. Então,
ela ia lá nos supermercados, e essas coisas, e apontava o que ela queria
[risos]... ou na lavanderia, essas coisas. Ela tinha uma certa dificuldade. Em
geral, também não houve grandes problemas. Porque, inclusive, tinha outros
brasileiros, além do Newton Freire Maia, que estava no mesmo prédio. Tinha
outros brasileiros lá, que também estavam fazendo estágio. Então, foi uma
boa época da nossa vida.
DENT: E como foi a relação que você estabeleceu lá com James Neel? Como foi
a experiência de trabalhar com ele pessoalmente, porque foi o início de uma
colaboração de muitos anos...
SALZANO: É...
DENT: Como foi ao início para trabalhar com ele?
SALZANO: É, ele... no primeiro dia, eu cheguei lá e me apresentei para ele,
ele me olhou... Me olhou, assim, e disse: "pensei que você fosse muito mais
velho do que é". [risos]. Eu disse: "como? Bom, isso é uma coisa que o tempo
vai resolver, não tem problema nenhum". E, aí, ele me serviu de guia, né,
durante todo esse estágio. Ele era um tipo [Prof. Salzano tamborila firmemente
00:28:00duas vezes na mesa] que pessoal considerava autoritário. Mas sempre muito
amável comigo, com minha família, etc.
Ele nos convidava várias vezes para ir na casa dele, para jantar. E, agora...
Ele tinha um horário certo. Chegava uma certa hora da noite, ele dizia: "well,
acho que vocês... já está na hora de ir para casa". Já se levantava, já ia
pegando o casaco de inverno, e tal. [risos]. Então, era meio durão, assim,
nessa questão do uso do tempo. E ele, em geral, não tinha problema. A única
ocasião curiosa em que... Nós não tínhamos televisão. Chegamos e não
tínhamos televisão. E, aí, eu disse: "bom, tem que comparar uma televisão".
Aí, eu fui em uma loja lá em Ann Arbor e disse que queria comparar, que tinha
dinheiro para comparar. Mas... parcelado. E o funcionário lá da loja começou
a fazer uma ficha minha. E, aí, qual era a minha profissão? Disse: "não, eu
sou estudante". Em última análise, eu era estudante. Embora já fosse
professor, né, da universidade aqui no Brasil. E, aí, quando falei estudante -
00:30:00não sei como é que está agora - mas todo mundo ficava de 'cabelo em pé'.
[risos]. Porque, inicialmente, não tinha uma vida muito regrada. Então,
"estudante e tal?". "Não, mas estudante de pós-graduação". "É... mas tem
que ter alguém que se responsabilize por essa compra à prazo. Quem que você
conhece aí?". "Bom, eu conheço o professor Neel." Ele disse: "Tá, então,
vamos lá, vamos lá falar com ele". Eu disse: "não, mas...".
DENT: [risos].
SALZANO: Tinha pouco tempo que eu tinha chegado. Não tinha muita intimidade com
ele. Aí, me pegou, botou no carro e me levou lá no escritório do Neel. E eu,
super encabulado, porque não tinha muita intimidade com ele. Aí ele falou:
"não, você serve de... você vai servir de fiador para essa transação aí".
E ele não gostou muito da coisa. E ele disse: "Mas e se ele não pagar, o que
vai acontecer?". "Não, se ele não pagar, a gente pega o aparelho de volta".
"Tá, então, está. Eu sirvo de fiador".
DENT: [risos].
SALZANO: Mas durante muito tempo, ele sempre dizia para mim: "Além do tempo que
você está vendo televisão, o que você está fazendo"? [risos]. Explicação
00:32:00da história da televisão aí. Não deixava de lembrar, de vez em quando, que
ele era o fiador.
DENT: [risos].
SALZANO: Em geral, ele era muito rigoroso com o pessoal do laboratório, e tal.
Tem histórias, muitas histórias sobre ele. Mas comigo sempre foi muito
amável. Foi uma relação muito boa. Que, em última análise, era quase de pai
para filho. Então, tinha uma certa diferença de idade. Então, como eu disse,
várias vezes a gente foi lá, jantava lá. E depois, vários anos depois,
quando eu ia a Ann Arbor, ele me convidava para ficar na casa dele, me hospedava
na casa dele. Eu tinha uma relação muito boa com a esposa dele, também.
Então, foi ótimo.
DENT: E a relação com Newton Freire-Maia, que estava também lá com você? E
como, como foi durante o tempo que vocês estavam lá, nos Estados Unidos
juntos? Trabalhavam também juntos? Ou como... como era...
SALZANO: Não, não. Eram projetos diferentes. Eu estava interessado na parte
laboratorial. Então, era especificamente, naquela época, o importante eram os
grupos sanguíneos. Então, estudos de imunologia e estavam surgindo as
00:34:00técnicas de eletroforese também, que eu também comecei a me familiarizar.
Além de trabalhar em um projeto de revisão bibliográfica.
E o... Newton, não, o Newton foi para lá mais para se aprofundar nos estudos
de bibliografias sobre casamentos consangüíneos. E outras áreas da estrutura
populacional, digamos, das populações humanas. Então, eram problemas
distintos. Nós também sempre tivemos certas diferenças no que se refere ao
interesse da pesquisa. E certas questões filosóficas da aplicação dos dados
a determinadas teorias. E, apesar disso, sempre mantivemos uma amizade muito
grande, como um irmão meu, na verdade. Também foi muito gratificante o tempo
que a gente ficou lá, e posteriormente.
DENT: Se conheceram antes de ir lá? [Ou só por]
SALZANO: [Muito pouco].
DENT: [só por] correspondência?
SALZANO: É. Porque quando eu cheguei, o Newton, ele estava ligado à
universidade de São Paulo, ao mesmo departamento do professor Pavan, que eu
fui, ele estava trabalhando lá já há um ou dois anos. Mas aí surgiu a
00:36:00oportunidade para ele ir para Curitiba. No momento que eu cheguei, em 51, ele
estava saindo para Curitiba, para montar o departamento lá, na Universidade
Federal do Paraná. E, então, esse primeiro contato foi muito rápido. Então,
se aprofundou realmente durante a nossa estada lá nos Estados Unidos. E,
posteriormente, ficamos sempre em contato. Eu ia lá a dar cursos e ele vinha
aqui. Enfim, temos esse livro publicado.
DENT: E... Então, quando você voltou para Brasil, como era a experiência de
voltar depois de um ano lá de pós-graduação?
SALZANO: Pois é. Quando eu sai, já estava montado o laboratório de genética
aqui na universidade. O professor Cordeiro. E, então, eu voltei justamente já
integrado à equipe. Só que, então, tinha que montar toda uma linha
diferenciada de estudos de genética humana, porque todo o resto do laboratório
estava desenvolvendo pesquisa em drosófila. Bom, e aí eu fui montando as
00:38:00coisas pouco a pouco. Então, houve várias trocas de prédio. Nós começamos
lá no campus central. A Faculdade de Filosofia era recém formada, recém
fundada também, na época. E não tinha prédio próprio. Então, o nosso
primeiro laboratório tinha mais ou menos o tamanho aqui dessa sala.
DENT: Que são, talvez, quatro metros quadrados...
SALZANO: Quatro por seis, por aí.
DENT: Quatro por seis, sim.
SALZANO: Eu estava no porão da Faculdade de Direito. [risos]. Pouca coisa que
ver, mas era o espaço disponível para o curso de História Natural, em geral.
Nós tínhamos esse pequeno laboratório lá. E foi aos poucos se expandindo.
Porque o Cordeiro começou a ocupar o espaço dos sanitários. Ele pegava e
transformava em laboratórios.
DENT: [risos].
SALZANO: E em uma gestão do professor Bernardo Geisel, que eu falei antes, a
Filosofia fez um prédio próprio, que ainda existe hoje lá no campus Central.
Aí, a gente passou para um espaço bem maior, né. E foi lá que se começou
realmente a parte de pós-graduação, com a vinda de dois professores
00:40:00norte-americanos que passaram um ano aqui.
DENT: E lembra quem eram?
SALZANO: Townsend. Joel Ives Townsend. E o William [Wright] Milstead. O Townsend
era um ex-aluno do Dobzhansky que, então, depois foi lá para o Sul dos Estados
Unidos. E eu não sei se ele era recém formado na época, ou não. E o Milstead
já era de outra formação. Ele trabalhava com anfíbios. Foram dos primeiros
cursos de pós-graduados que se deu inclusive no Brasil. A fundação que serviu
para institucionalizar toda essa parte da pós-graduação é a CAPES, a chamada
CAPES, que é a Coordenação do Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior.
Aí, como é grande, a gente sempre fala em CAPES. É mais fácil. Então, a
CAPES é fundamental para institucionalizar a pós-graduação no Brasil. E uma
das primeiras iniciativas que ela teve para trazer professor de fora foram esses
00:42:00dois. Estava bem no início da carreira dessa instituição também.
DENT: Como foi formando os projetos de pesquisa? Voltou dos Estados Unidos com
uma agenda ou uma lista de projetos que queria fazer? Ou estava montando para
iniciar algo novo? Como, como era... como era que você encontrou os temas que
ia pesquisar, chegando de volta depois do pós-doutorado?
SALZANO: Pois é, antes de sair, lá nos Estados Unidos, eu conversei com o
Neel, para estabelecer o que eu faria na volta. E o Neel me disse assim: "qual
é a população de estudo que você pode fazer muito melhor que qualquer outro,
em qualquer outro lugar no mundo? São os índios, os índios: brasileiros;
você está mais perto geograficamente, tem mais facilidades. Qualquer outro
estrangeiro que queria fazer esse trabalho, vai ter mais problemas." Então, se
montou esse primeiro estudo de populações ameríndias. Então, tão logo que
eu voltei, já comecei a trabalhar com populações aqui do Sul, do Brasil, que
se constituíram na minha primeira tese de livre-docência. É um sistema que
00:44:00não tem nos Estados Unidos, mas tinha na Europa. Ainda tem aqui. Essa tese
saiu... Aqui tem uma foto [Salzano abre a tese] da tese de livre-docência.
Está meio amarelinha pelo tempo...
DENT: Pode descrever a foto?
SALZANO: 1961... Esses são os índios Kaingang, vivem em diferentes reservas
indígenas, florestais, no norte do estado do Rio Grande do Sul. E essa é uma
imagem do grupo lá de Nonoai [município], chamado...
DENT: Nonoai?
SALZANO: É. Foi uma das primeiras populações que eu investiguei do ponto de
vista genético. Aí, então... Eu fiz essa livre-docência que era importante
na época, em termos de carreira universitária. 1960. É a tese. Foi depois
publicada em 1961. E aí em '62, houve os contatos com o Neel. Ele já tinha
vindo ao Brasil, rapidamente, um pouco antes disso. E a gente fez o primeiro
trabalho de campo com os Xavante.
00:46:00
DENT: Podia comentar um pouco mais, que eram os objetivos dos estudos com os
povos indígenas? Porque, Neel obviamente sabia que você ia estar mais perto,
não? Mas teve algum conceito científico que queriam desenvolver com esses...
com essas populações?
SALZANO: Pois é... Na época, estava também no ar a ideia de que deveria se
estender os estudos de genética de população a populações humanas. Se sabia
muito pouco sobre isso. Como fazer isso, né? O que seria importante para
investigar em genética de populações humanas? Então, o Neel tinha certas
ideias. Eu também, com minha experiência anterior em drosófila, sobre o que
seria importante do ponto de vista evolucionário. E a gente fez uma reunião
lá na Organização Mundial de Saúde, em Genebra, para estabelecer esses
objetivos de uma maneira bem específica, com pesquisadores de diversas partes
do mundo, que também estavam interessados em grupos tribais. E, aí, então,
saiu um documento sobre isso. A ideia era essa, de fazer investigações multi
00:48:00ou inter-disciplinares para esclarecer melhor a variabilidade genética da nossa espécie.
DENT: E você se enfocou só nas populações indígenas? Ou também estava
fazendo também estudos nas populações sobre outras populações?
SALZANO: É, não... eu cheguei aqui em Porto Alegre e disse: "não. Tenho que
fazer alguma coisa aqui. Não vou está só fazendo o que depende de viagens
fora de Porto Alegre." Então, desde o início, eu estabeleci contatos com
médicos e comecei a fazer a parte de genética médica também. Além de
investigar a variabilidade da população de Porto Alegre mesmo. Isso também
resultou em vários trabalhos.
DENT: E esses estudos aqui em Porto Alegre, como era a população que estudava?
Eram pessoas doentes que chegavam ao hospital? Era uma pesquisa clínica assim?
Ou era... como...
SALZANO: As duas coisas.
DENT: Sim.
SALZANO: Tanto a gente estabeleceu parcerias com médicos, como procurei
investigar a população normal. E isso foi feito de diferentes marcadores, com
00:50:00a ênfase principal na questão variabilidade inter-étnica e de que maneira os
genes de um grupo étnico passavam para o outro e como isso influenciava a
estrutura da população, digamos.
Um dos pontos mais altos foi a descoberta de uma hemoglobina anormal, que foi
denominada "hemoglobina Porto Alegre". [riso]. E não foi apenas uma mais
variante de hemoglobina. Existia centenas... Mas foi uma que tinha duas
peculiaridades. A primeira é que havia um processo de polimerização,
aglomeração de moléculas, devido a essa mutação, que era uma mutação
silenciosa. No sentido de que na pessoa não se notava nenhuma diferença
clínica. No entanto, quando se coletava o sangue no tubo e sai a molécula de
hemoglobina, que é constituída de quatro unidades, ela polimerizava. Formava,
em vez de um tetrâmero, um octâmero. E alguns indivíduos tinham a mutação
de dupla dose formava, inclusive, dodecâmero, doze unidades juntas. Então, ela
00:52:00serviu como modelo também para investigação geral, de como as proteínas se
agregam umas às outras nesse processo de polimerização. Isso foi feito
também em colaboração com o pessoal lá de Ann Arbor.
DENT: Quando vocês estavam fazendo essas pesquisas, por exemplo... com quem
estava trabalhando? Quem formava parte do grupo de pesquisas? Era você com
colaboradores e estudantes, ou... Como era a estrutura da...
SALZANO: Pois é... naquela época, já havia começado o processo de
pós-graduação no Brasil. Então, a gente começou a recrutar diferentes
jovens, que estavam fazendo mestrado ou doutorado, que desenvolveram também o
trabalho, além de uma interação grande com outros pesquisadores do Brasil e
do mundo, em geral. Desde o início, eu procurei enfatizar essa parte do
trabalho em consórcio, em redes... de aumentar o poder, digamos, de investigação.
DENT: E trabalhavam com técnicos também? Ou os estudantes foram os técnicos
que, que...
SALZANO: Não... Também tínhamos um ou dois técnicos que ajudavam na parte
00:54:00laboratorial, além dos estudantes. Então foi, paulatinamente, fomos montando
as técnicas que eram utilizadas em todo o mundo. Inicialmente, com a ajuda da
Rockefeller, também, na parte inicial. E depois com as outras instituições brasileiras.
DENT: E como foi o relacionamento com os pacientes, ou os sujeitos que... que
falavam para eles? Como era a interação que vocês tiveram com as pessoas que
estavam sendo estudadas, não?
SALZANO: É, em geral, aqui em Porto Alegre, havia um contato com os médicos,
que serviam de intermediários, ou o contato direito. Nesses casos, havia a
questão da interação com outras unidades, na qual se fazia a coleta de
sangue, por exemplo, para aproveitamento dessas amostras para estudos. E no caso
das populações ameríndias, desde o início, a gente procurou dar uma
contrapartida para eles. Bom, inicialmente, todo o processo era submetido ao
crivo da FUNAI, a Fundação Nacional do Índio. Nenhum tipo de pesquisa poderia
ser feita sem a aprovação da FUNAI. Posteriormente, então, quando a gente
00:56:00estava no campo, a gente sempre procurou também retribuir através de
principalmente apoio médico. Fornecia medicamentos e possibilidade de
tratamento para essas pessoas.
DENT: E os gaúchos, aqui de Porto Alegre, que foram parte das pesquisas...
você interagiu diretamente com eles? Ou foram tiradas as amostras de sangue por
outra pessoa? Você falou com as pessoas que estavam no estudo?
SALZANO: Em parte, né?! Em alguns casos, sim, em outros, não.
DENT: Estou interessada no ponto de vista deles. Que pensavam eles da pesquisa?
Como era a explicação? Ou o interesse deles em participar?
SALZANO: Pois é, em geral a gente dá uma explicação bem geral. Porque a
genética não era muito conhecida na época... nem agora. Mas se procurava
explicar que era um objeto de estudo de variação normal. E que
possivelmente... potencialmente poderia ter algum interesse médico ou
biológico. Mas em termos bem gerais. Tanto aqui, na população daqui como
00:58:00fora. Em geral, não havia grande resistência. O problema das resistências ao
trabalho da genética é agora. Se desenvolveu ao longo do tempo, com uma série
de interpretações errôneas sobre o nosso trabalho. E algumas publicações
também fantasiosas. Ou até caluniosas. Como aconteceu com esse episódio aí
do Neel, que a gente examinou, aí no Lost Paradises.
DENT: Eu li o livro de Lost Paradises. A coleção que você editou, né, que
era organizado com...
SALZANO: Magdalena...
DENT: Sim, a professora Hurtado.
SALZANO: É.
DENT: Claro. Então... já... você voltou dos Estados Unidos já planejando
trabalhar com as populações indígenas, também com a população daqui de
Porto Alegre. Demorou um pouco para a chegada de Neel para a colaboração
internacional. Como era a experiência da chegada dele? Porque era já um novo
projeto, não? E eu entendo que você fez tudo para...
SALZANO: Não era bem um novo projeto. Porque já era uma continuação do
projeto que eu estava fazendo aqui no Rio Grande do Sul, que agora, então,
estava sendo estendido para as populações do norte. Então, foi mais ou menos tranquilo.
01:00:00
DENT: Mas é, foi uma mudança receber colaboradores internacionais, enquanto ao
trabalho que você fez? Porque eu vi muita correspondência falando de como iam
fazer. Porque foi uma pesquisa bem complicada para chegar, e todo. Pode explicar
um pouco como era o processo?
SALZANO: É, bom... Inicialmente, durante todo o tempo que comecei a trabalhar
aqui, também estava em ligação com o grupo de Ann Arbor. E a gente, com
relação ao material coletado aqui, mandava amostras para o exterior, para Ann
Arbor e fazia publicações conjuntas. Então, a diferença de 1962 foi que, a
primeira vez [que] ele vem para fazer trabalho de campo. Mas o departamento
deles já estava envolvido com os nossos projetos do ponto de vista do material
e de análise dos dados.
DENT: Pode descrever a experiência de fazer o trabalho de campo com Neel, e
estavam lá Junqueira, e Keiter e Maybury-Lewis, não?
SALZANO: Isso.
DENT: Como era a experiência de ir por primeira vez para a terra Xavante?
SALZANO: As populações aqui do Rio Grande do Sul já estavam mais ou menos em
contato com os não-indígenas já há tempo. Então o acesso era mais fácil.
01:02:00Então, foi a primeira vez que a gente foi para um grupo que estava praticamente
isolado, no meio do mato... E o grupo também aumentou. O trabalho de campo aqui
no Rio Grande do Sul era só eu e um técnico. Então, foi uma experiência interessante.
O Junqueira, ele tinha bons contatos com políticos lá do Rio de Janeiro.
Então, ele conseguiu um avião da FAB, Força Aérea Brasileira, que nos
transportasse especialmente do Rio de Janeiro para um campo de pouso do lado da
aldeia Xavante, dessa aldeia. Então, foi um apoio importante.
E o Neel estava sempre interessado em ter um maior número possível de
oportunidades no campo... e apoio logístico, em última análise, no campo.
Então, ele resolveu levar um gerador mecânico, de força. Pesava, sei lá, 4
toneladas. Enorme! Naquela época... Mas atualmente também gerador é muito
pesado. E, aí, foi para isso que a gente inclusive conseguiu o avião da FAB,
01:04:00para carregar isso. E depois, para carregar o gerador para a aldeia também foi
necessário um mutirão, um monte de indígenas ajudando para carregar, nas
costas. Mas aí se instalou o disjuntor, no posto da FUNAI. Era um posto de
apoio para os funcionários lá da FUNAI. E foram duas semanas, aproximadamente,
que a gente ficou lá no campo, o Neel tentou desesperadamente fazer com que o
gerador funcionasse e não conseguiu. [risos]. Então, deve estar ainda lá,
até hoje, como um símbolo dos problemas tecnológicos da sociedade industrial.
DENT: [risos].
SALZANO: [risos]. Ele sempre carregava também um monte de equipamento, livros,
para eventual consultas, livros de patologia. Porque ele fazia os exames
médicos. Então, geralmente era uma carga pesada.
DENT: E como foi um dia típico do trabalho de campo lá?
SALZANO: Inicialmente a gente fazia os levantamentos genealógicos e isso
basicamente quem fazia era eu, e... com ajuda depois, para montagem, do
01:06:00Maybury-Lewis- montagens das genealogias. E após essa obtenção dessa
informação, aí o professor Keiter, da Alemanha, fazia sempre medidas
antropométricas. A gente fazia esse trabalho durante a primeira parte do
trabalho de campo. E só no final fazia a coleta de sangue, porque logo depois
de coletar tinha que ser embarcado para o laboratório para os estudos, porque
é um material perecível. Então, era a primeira etapa. Depois, a gente
relocalizava as pessoas, coletava o sangue, e, aí, embarcava no avião para a
parte laboratorial.
DENT: E como era... a que hora acordavam? Quantos horas trabalhavam por dia? O
que comeram por lá? Como era a interação com... com as pessoas do estudo, com
os Xavante? Eles... como relacionavam com a equipe? Como?
SALZANO: É, não... Nessa época, eles ainda estavam muito isolados, e com
pouca influência não-indígena. Eles são estruturados em grupos de idade.
Então, era muito comum determinados grupos de idade se reunirem e fazerem
01:08:00danças, em roda, em diferentes horários durante o dia, inclusive, durante a
noite. Então, de vez em quando eles se reuniam e faziam uma serenata para nós
na noite, com cantos típicos deles.
O trabalho se iniciava, mais ou menos, na época que eles levantavam, que era ao
redor de 9 horas, por aí. E... ia até boa parte da tarde. Mas depois, o fim da
tarde já não se fazia mais nenhum trabalho de coleta, de estudo. E
alimentação, como era um posto da FUNAI, havia um funcionário lá, com a
esposa, e eles faziam a comida. Então, facilitava a coisa.
DENT: Ele... O homem que estava lá era Ismael...
SALZANO: Isso, Ismael.
DENT: Ismael Leitão? E ele, como era?
SALZANO: Ah, um tipo muito peculiar. [riso]. Interessante. Muito expansivo. Meio
baixo, meio gordo. E muito expansivo. E ele conhecia os índios muito bem.
Porque ele foi um dos primeiros a fazer contato com os Xavantes, na época em
01:10:00que ainda havia muito pouco contato. E , inclusive, falava a língua Xavante.
Então, ajudou também nessa parte de tradução. Em geral, foi muito cordial
também. Ele e a esposa também foram muito cordiais. Muito colaboraram muito conosco.
DENT: E se interessavam nas pesquisas também? Ou...
SALZANO: É... Não de uma maneira... Ele, o Ismael não tinha grande formação
intelectual. Estava mais lá como funcionário mesmo do posto, para
supervisionar se fosse feito o que deveria ser feito, mas não do ponto de vista científico.
DENT: E a provisão de ajuda médica que fizeram lá... bom... o professor Neel
foi médico, não?! E... E o Junqueira também...
SALZANO: O Junqueira praticamente só fez o trabalho/ só foi ao campo na hora
da coleta de sangue. O Neel fez o exame médico de todos os membros da aldeia.
Detalhadamente registrou tudo. E publicamos também a maior parte desses dados
nessa primeira publicação. E também fornecia remédios e tal.
01:12:00
Não foi nessa aldeia, mas em uma outra, um episódio que foi chocante, é que
havia um órfão na aldeia, uma pessoa que havia perdido os pais, e não havia
nenhum parente próximo para cuidar da criança. Então, ela ficou mais ou menos
abandonada. Quando nós chegamos lá, ela estava praticamente tomada de um, de
verme chamado 'bicho-de-pé' aqui, que é um verme subcutâneo, se instala de
maneira subcutânea, vai botando ovos e... A criança estava praticamente tomada
com esses vermes. E muito debilitada, lógico, por isso. Então, para fazer o
tratamento, esses anti-vermicidas são muito agressivos. Então, durante todo o
tempo que a gente esteve lá, o Neel pegava a criança, começava a tirar com a
pinça um por um todos... a diversa quantidade de vermes que ela tinha. Um
trabalho imenso, fantástico, que ele fazia com a maior naturalidade. São
coisas que não aparecem nos trabalhos científicos, mas que foi muito
importante para a sobrevivência daquela criança.
E, em outra ocasião, nós estávamos no campo e, aí, chegou um morador
01:14:00não-indígena da região... que estava desesperado porque a mulher tinha tido
uma criança e a placenta não tinha saído. Então, ele estava desesperado para
ver quem podia ajudar do ponto de vista médico. E, aí, então, o Neel, eu,
mais uma ou duas pessoas fomos de barco à noite - embarcação precária -
várias horas ao longo do rio para chegar até essa cabana, onde estava, então,
a mulher. E, aí, havia também uns médicos que estavam fazendo também
pescaria lá no Xingu... Havia dois médicos, era o Neel e esse. E eu servindo
de intérprete para o Neel e a mulher e também com relação a esse outro
médico. Bom, para encurtar a história, somente a partir das massagens
abdominais que o Neel fez durante um bom tempo é que foi expelida a placenta e
mulher sobreviveu. Então, outro episódio que ninguém conta. E ficam falando
01:16:00que ele era contra os índios. Bom, nesse caso não era índio. Mas o apoio
médico que ele deu em um momento determinado, crucial para aquela família.
DENT: Você gostou de viajar para fazer os estudos de campo?
SALZANO: Ah, eu adoro o trabalho de campo.
DENT: Sim?
SALZANO: Agora eu já não posso mais, por problemas de saúde. Mas sempre foi
uma das minhas... porque, em geral, o cientista... Tem vários tipos de
cientista. Tem o cientista que gosta do trabalho de campo, 'mateiro', como se
diz. Tem o cientista que gosta de trabalhar no laboratório, e tem o cientista
que gosta de trabalhar nos dados, que não quer laboratório nem gente. Então,
são três tipos. E, realmente, para mim, eu gosto dos três. [risos]. Eu gosto
tanto de fazer trabalho de campo, como ir no laboratório, trabalhar com as
amostras, e depois analisar as amostras. E isso é um pouco raro. Porque às
vezes, a pessoa faz uma coisa, e não faz outra. Então, é, por isso, que é
difícil de fazer pesquisa, também.
DENT: E que, que... o que gostou do trabalho de campo? Que, que foi o que foi
grato para você?
SALZANO: Em geral, a experiência em si sempre foi gratificante no sentido de
01:18:00contato com a natureza. Antes, inclusive, antes dos estudos com populações
humanas, o contato com a natureza; a interação com pessoas de outros níveis
culturais; o contato com novas culturas, isso também foi muito importante. E a
experiência em si, acho que novos ambientes, novas pessoas, né?! E a natureza
em si, também. Isso tudo faz com que, para mim, o trabalho de campo sempre
fosse interessante.
DENT: Pode descrever um pouco o Mato Grosso, que eu não conheço? Como é a
natureza lá? Como...
SALZANO: É uma região que tem contrastes. Tem uma região semi-árida, boa
parte do território. Mas também com florestas bem fortes. Mas elas estão no
limite, digamos, entre a região do Planalto Central do Brasil com a Amazonia,
em si. Então, isso faz com que essa região também tenha uma série de
peculiaridades. E é uma região de difícil acesso devido a isso também. Uma
01:20:00região de difícil acesso, se não for por avião...
Uma vez, a gente resolveu ir por terra a uma outra aldeia Xavante e foi um drama.
DENT: [risos]sim.
SALZANO: Mesmo a station wagon, de tração de quatro rodas. Foi uma odisséia.
Saímos daqui e fomos até lá. Goiânia, depois de Goiânia para região do
Mato Grosso. Ficamos atolados várias vezes na areia. Quase não sobrevivemos. [risos].
DENT: Isso foi com Neel?
SALZANO: Não, essa a gente foi só eu e o meu técnico.
DENT: Ah [risos]. E chegaram, finalmente?
SALZANO: Não, foi um drama. Porque a ideia era que a gente fosse terra e depois
tivesse o apoio aéreo do Junqueira, que deveria então chegar lá na época que
a gente fez, coletando sangue, depois transportar o sangue por via aérea, para
o Rio de Janeiro. E quando chegou a hora de coletar o sangue, ele devia chegar
no dia seguinte de avião. Então, a gente coletou e ele veio? Não, não veio.
Então, então... a gente esperou um dia, esperou dois dias... Não aparecia.
01:22:00Nada. Não tinha nenhum contato. Aí, resolvemos voltar por terra, com o sangue.
Quando a gente saiu de lá, disse que um assistente do Junqueira chegou na
aldeia de avião leve, desses monomotor. Deu uma olhada e ele voltou. Enquanto
isso, nós estávamos sofrendo na estrada. Em momento determinado, o motor da
camionete começou a falhar e também não dava... não dava o início. Então,
se a gente parasse e desligasse o motor, tinha que empurrar para que o motor
pegasse novamente. Então, em um momento determinado, no meio de um areal
tremendo, se tinha que passar por um leito dum rio, e afundamos. Não saia. O
sol, muito forte. E as amostras lá, com perigo de se deteriorarem. Aí, eu fui
lá, saí caminhando por uns quatro, cinco quilômetros, para uma aldeia, até
conseguir um caminhão, que estava lá, distribuindo tijolo. Até ajudei a pegar
tijolo do caminhão, para levar o mais rápido possível o caminhão lá para
nós. Aí, no final, o caminhão nos tirou. E a gente continuou.
01:24:00
Depois, numa outra hora, lá, nós estávamos no escuro... Nós saímos cedo, de
manhã de cedo, e do local, da aldeia indígena, da localidade mais próxima
são 40km. Saímos cedo, já de tardezinha, não tínhamos chegado ainda no
destino. E, aí, atolou de novo o carro. Aí, saí também de novo à procura de
ajuda. Tinha uma casa de um habitante da região. Ele disse: "só tem essa pá
aqui". Uma pá de cavar. E eu peguei a pá. Voltamos. Eram 2km. Eu e o Girley,
que era o meu colaborador, começamos a cavar para tentar 'desentolar' a
camionete. E ele, sentado de cócoras, só olhava e dizia: "não vai dar". Em
vez de nos animar, ele dizia: "não vai dar, não vai sair daí". Aí, por uma,
não sei, por um acaso enorme, uma camionete vinha passando. Começou a
escurecer, por ali, e aí no fim nos tirou do atoleiro. E a gente chegou.
[risos]. Levamos doze horas... é, doze a quinze horas para vencer 40km. Quando
01:26:00eu cheguei lá no Rio, ele: "ah, não, a minha mulher", o Junqueira, "a minha
mulher teve um problema de gestação tubária... Então, não podia ir, não
consegui um auxiliar." Mas esse foi o fim do trabalho de colaboração com o
Junqueira. [risos].
DENT: [risos]. Imagino.
SALZANO: Que é uma pessoa ótima, agradabilíssima. Bom amigo meu. Continuou
sempre até a morte dele. Mas paramos de trabalhar em colaboração.
DENT: [risos]. Sim, imagino. Então, lhe parece bem que paramos lá para hoje?
E... então... não sei se você gosta de agendar outro dia?
SALZANO: Sim, como quiser.
DENT: Se seria possível. Interessante essa história de Junqueira. [risos]. Mas
e quando chegou o sangue estava/
SALZANO: Ah, no fim deu. O sangue deu para testar.
DENT: [risos] Deu? E você fala que gosta da experiência de fazer pesquisa de campo?
SALZANO: Pois é, mas isso tudo são os sofrimentos que dão prazer... [risos].
Nem sempre o trabalho de campo é assim, extenuante. Uma vez também, com Neel,
a gente fez uma viagem ao longo do Amazonas com um navio oceanográfico
norte-americano, chamado Alpha Helix. E, aí, nós tínhamos ar-condicionado,
01:28:00cozinheiro. Tudo no maior estilo, primeiro mundo.
DENT: Quando foi? Quando fez essa viagem?
SALZANO: Isso foi... quando... na época do estudo dos Ticuna. Na década de 1980.
DENT: Então, para outro dia pode me contar como era essa experiência...
SALZANO: Pode ser.
DENT: Ah, perfeito. É, então.. Muito obrigada.
[Francisco Salzano e Rosanna Dent seguem conversando para agendar a próxima entrevista.]
DENT: Então chegamos até 1900 e..SALZANO: 80
RS: 62. Acho que podemos partir desde o reporte da Organização Mundial de
Saúde que voce participou dessa reunião que fizeram em Genebra para/
SALZANO: Esse foi anterior. Teve uma antes e depois teve em 1968.
DENT: Talvez podemos partir, iniciar desde essa reunião da/
SALZANO: Sim, sim. Lógico, pode ser.