00:00:00DENT: Hoje é o dia 28 de janeiro de 2014. Eu sou Rosanna Dent, doutoranda em
História das Ciências da Universidade de Pensilvânia , e eu tenho o prazer de
conversar hoje com Maria Catira Bortolini, professora associada da Genética na
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Estamos aqui na UFRGS, no Instituto
de Biociências em Porto Alegre.
Professora, eu gostaria de começar pedindo para você nos fazer um apanhado das
influências , assim, da família, da escola, quais são os fatores que levaram
você a estudar Biologia, a se interessar no tema? Desde o início, pensando na
versão de você de menina, de criança.
BORTOLINI: Na escola eu não tive uma Biologia muito instigante, o professor
não era, que eu me lembro, desses professores de Biologia, não teve nenhum que
se destacou. Eu tive um professor muito bom na Física, que ele era muito bom
mesmo. Então ele dava um estímulo grande, mas era um momento também mais...
Acho que a gente vivia uma época de uma ditadura no Brasil. Era um momento de
pouca criatividade, eu diria assim.
A ciência brasileira, assim, a gente não ouvia, não era uma rotina na minha
família se falar de ciência. Era uma coisa, assim... Enfim, não era um
ambiente de livre pensar, eu diria. Não sei se era pelo fato de ser uma
ditadura, ou por ser uma família de pessoas que não tinham nível de
00:02:00escolaridade superior.
A minha mãe era professora, tinha uma escolaridade maior. Meu pai não, meu pai
só tinha até a quarta série do ensino básico. Então não sei se era só o
ambiente, ou o era também o ambiente social que não favorecia muito a... Só
depois, quando eu fiquei maior. E também o tipo de personalidade que eu
sempre... Eu não sou uma pessoa que me contenta com as explicações fáceis.
Eu não tenho/apesar de vir de uma família católica, nunca achei que aquelas
explicações eram muito boas para coisa nenhuma. Então já vi que eu não
tinha um cérebro preparado para coisas que explicavam os fenômenos de maneira
mitológica e tal. Então é claro que eu tenho cérebro preparado para a
ciência. Não acredito, não consigo ver um cientista explicando as coisas de
uma maneira fácil.
Então eu acho que eu tinha uma personalidade nata já, bem típica de quem vai
ir para uma área mais racional , em termos de buscar explicações para as
coisas. E depois, eu, na hora de fazer vestibular, foi meio assim: "vou fazer
Biologia, que eu acho legal". Também não se falava em Genética, só durante o
curso que eu vim conhecer a Genética e a Evolução, também não se falava
muito. Foi meio inesperado, meio ao acaso assim, eu diria.
A minha mãe diz que eu falava disso quando eu era criança. Eu ganhei um
00:04:00microscópio de uma tia minha e brincava, isso eu lembro. E que eu falava (eu
não lembro), desse interesse pelas coisas naturais. Lembro de brincar com
formiga e ficar observando tempo como elas agiam, outras coisas da natureza e
botar no microscópio, isso sim eu me lembro. A mãe lembra mais coisas que eu
fazia quando era criança.
Mas a Genética foi durante a graduação mesmo, mas eram ambientes muitos
diferentes do que a gente tem hoje e que a gente vê. Eu tive a possibilidade de
ver o florescer da ciência no Brasil, digamos assim. Antes eram poucos
pioneiros e, eu acho, muito encastelados dentro do ambiente acadêmico.
Hoje a gente vê a ciência de uma maneira mais presente no cotidiano, as
pessoas falando mais. Isso não causa surpresa mais, ter um cientista no seio de
uma família. Quer dizer? No tempo que eu era criança isso era coisa de outro
mundo. Cientistas eram os astronautas que a NASA tinha, sabe? Era uma coisa,
assim, não era uma coisa próxima. Isso mudou muito e foi rápido.
DENT: Ingressou na faculdade em que ano?
BORTOLINI: Em 1980, era um momento importante na história do Brasil, porque a
gente estava saindo da ditadura. Já tinha tido a lei da anistia em 79,
participei de alguns movimentos em 80, na faculdade, por democracia. Sim, ainda
tinha bastante repressão policial e tal, ainda era uma ditadura. Então foi um
momento muito efervescente.
Ao mesmo tempo, era um momento que a ditadura não tinha mais poder para uma
repressão violenta. Então a gente se manifestava, fazia paralisações, fazia
protesto, policia vinha, o exército vinha, mas naquele momento já não tinha
00:06:00mais mortos, presos ou desaparecidos. Então foi um momento interessante que eu
vivenciei na universidade.
Participando da reconstrução da UNE, da União Nacional dos Estudantes. Então
eu fui nas primeiras assembleias da UNE depois que ela sai da clandestinidade.
Então foi bem legal, eu lembro que era muito efervescente aquele momento,
assim, da vida acadêmica.
DENT: Pode descrever um pouco o processo de se formar nessa época? Como eram as
matérias que davam? Como eram...
BORTOLINI: A gente tinha forte a parte de Zoologia e Botânica, muito
sistemática. Fisiologia. Aí quando eu tive, a gente já naquela época, a
Biologia tinha três disciplinas voltadas para a Genética. Acho que hoje
também têm essas três obrigatórias, que foram muito importantes: que é a
Genética 1, Genética 2 e Evolução.
E esses professores que me deram essas disciplinas foram muito importantes. Eu
lembro da professora Suzana Cavalli, do professor Aldo Mellender Araújo, que
foi assim, que me deu aula de Evolução. Professora Vera Geiskey e professores
muito bons, que estimularam muito a imaginação de quem tem uma mente preparada
para curtir ciência e gostar de ciência.
Eu comecei a fazer/antes de ir para a Genética eu já fiz uns estágios como
voluntária na Bioquímica, e depois aí eu conheci a Genética. Comecei a
estagiar com o professor Aldo, que trabalha com Genética Ecológica, a gente
fazia saídas de campo.
Eu, como Bióloga, nunca gostei muito das saídas de campo, não gostava. Aquela
00:08:00coisa de mato, bicho, mosquito, acampamento, não gostava daquilo, do
desconforto. Assim, aquele Biólogo de ir para o mato eu achava legal. Assim,
como eu vou te dizer? Por um lado eu achava legal, mas por outro, o desconforto
gerado, o frio que a gente passava naquelas barracas, mosquito, não era algo
assim. Então eu já sabia que não seria Bióloga de mato.
E com o professor Aldo, ele trabalha, o organismo modelo dele, são borboletas.
Então a gente fazia saídas de campo para fazer estudos com as borboletas, e eu
não gostava daquilo. Por trás das perguntas colocadas, eram questões
biológicas interessantes, evolução do mimetismo, coisas que eu lia e gostava,
discutia bastante com ele.
Mas aquela coisa de passar a tarde no mato, o dia inteiro no mato, catando
borboleta, marcando borboleta, e tal tal tal. Eu não gostava daquilo. Então,
na hora de fazer mestrado, eu preferi os humanos. [Risos.]
DENT: E nessa época fez pesquisa com as questões das [borboletas?]
BORTOLINI: [Das borboletas?] Sim, a gente tinha um projeto que era para estudar
um tipo de borboleta, justamente a questão do mimetismo. E aí foi muito
frustrante, porque acabou dando em nada. Porque envolvia a captura e recaptura
das borboletas, marcar elas e recapturar depois.
Só que deu uma seca naquele verão, naquela primavera, agora eu não me lembro,
e as borboletas desapareceram. Então foi muito frustrante para mim, não tive
resultado nenhum com as tais das borboletas, com o projeto, naquela ocasião, do
professor Aldo. Foi bem frustrante para mim.
E aí eu resolvi fazer mestrado, conversei com o professor Aldo que eu queria ir
para área de humanas. E na faculdade também eu gostava de organismos maiores.
00:10:00Sempre gostei mais de mamíferos. Uma coisa que eu detestava na aula de Biologia
também, nas aulas de Fisiologia, eu não fui em nenhuma aula de Fisiologia que
tinha experimentos com animais, não fui em nenhuma.
Nós tínhamos um professor, professor Olegário, que era muito legal. Muito
maluco, ele tinha problema com álcool até. Mas ele era muito legal, os alunos
gostavam. Quando ele estava bem ele era um ótimo, um excelente professor. Só
não teve uma carreira mais brilhante por causa do alcoolismo.
E ele não fazia chamada. Então eu ia nas aulas teóricas e nunca fui nas aulas
práticas, com cachorros e tal. Era algo que me causava profundo desconforto.
Mesma coisa nas aulas de Zoologia, e a gente tinha muitas que abriam os animais.
Então todo filo que a gente estudava e ia estudar, tinha um animal que era
dissecado. Eu nunca participava, ficava longe e não via. Também me causava
muito desconforto, qualquer experimento envolvendo animal, assim.
Hoje é completamente proibido. Naquela época, para você ter uma ideia, se
catava, os professores tiravam os animais da natureza, tartaruga de Itapuã, e
iam para aula para fazer dissecação. Hoje é completamente proibido, né? Vê
os outros tipos de mentalidade que se tinham na época, mas eu não gostava,
nunca gostei disso. Ficava longe.
E vou te dizer, para se conseguir, era uma coisa inédita no curso de Biologia.
Passei todo o curso de Biologia sem nunca ter visto um bicho ser sacrificado.
Porque se tinha, e eu estava na aula, eu ficava longe, não via. E quando não
precisava, o professor não fazia chamada, eu não ia.
Então era algo que já sabia também, que fazer ciência envolvendo
experimentação animal não iria ser comigo. Me sinto absolutamente
desconfortável com o sofrimento de animais.
00:12:00
DENT: E aí se interessou mais na parte humana?
BORTOLINI: Me interessei na parte de humana. Eu gostava muito de comportamento,
a gente não tinha, a parte de grandes mamíferos a gente não teve na
faculdade. Era uma coisa que me interessava muito. Hoje tem, mas na época não
tinha. A gente fez uma excursão que eu nunca me esqueci, que foi no Parque
Nacional do Turvo, no norte do Rio Grande do Sul, que é o único parque
nacional que ainda tem onça pintada.
Então a gente andava e a gente via as marcas das onças, assim. Hoje elas são
bem estudadas naquela região ali. Mas era uma coisa que eu pensava, assim,
"Bah! Que legal estudar esse tipo de bicho". Mas a gente foi com um professor de
Botânica, era para fazer coleta vegetal. Os grandes mamíferos passavam ao lado.
Gostava de comportamento, e depois com a Genética fui me encantando com a
Evolução, e com a evolução humana achei o ponto forte. Genética de
populações eu também gostei muito, então aí comecei a me interessar por isso.
E aí fiz a prova de mestrado, aí eu passei e conversei com o professor Salzano
e com a professora Tania Weimer, na ocasião. E na época os dois me
entrevistaram, o professor Salzano estava com muitos orientados e acabei indo,
fui orientada da professora Tania, e que trabalhavam juntos na época, assim,
faziam parte do mesmo grupo. Mas sempre com um contato muito próximo do
professor Salzano.
E a professora Tania foi muito importante, porque ela foi uma pessoa que, além
de ter uma grande capacidade de orientação é uma pessoa muito gentil, muito
amável. Sempre, se eu tenho exemplo de orientadora eficiente, competente,
cordial, eu lembro da professora Tania. Gostaria de ter a paciência, que ela
00:14:00teve comigo, com os meus orientados, porque ela sempre teve muita paciência.
E aí eu fui para a Genética e comecei cada vez a gostar mais. Mas no início
as pessoas da família não entendiam muito direito. Eu lembro que quando eu
terminei o mestrado e comecei o doutorado, meu irmão, que é advogado: "Mas tu
não vai parar de estudar? Tu não vai trabalhar nunca?" Sabe?
Aquela questão assim, que está sempre estudando. Como assim não vai deixar de
estudar? O que que é isso? Vai fazer doutorado agora? Tu vê, na época, já
era nos anos '90, ainda tinha essa coisa assim. "Essa aí não vai parar de
estudar, para que que serve isso?" Tinha essa coisa: "é hora de trabalhar, não
está na hora de ficar fazendo..."
DENT: E o que achavam do tema, assim, da Genética, do fato de que você estava
estudando Genética?
BORTOLINI: A mãe sempre foi uma pessoa curiosa com ciências, e ela sempre
gostou. Então a mãe sempre me perguntou. Acho que a pessoa da família que
mais gosta das coisas que eu faço é a mãe. Ela me pergunta. E quando sai uma
matéria na imprensa leiga, que ela pode passar... Porque ela fica no Facebook,
eu não tenho Facebook, mas a mãe tem. Ela passa para os parentes, para as
amigas dela e tal. A mãe gosta, pede para mim explicar as cosias para ela
assim. Da minha família, a pessoa mais interessada realmente é minha mãe.
DENT: E como iam reaccionando [reagindo] as outras pessoas? Os amigos, primos,
as pessoas que...
BORTOLINI: Não entendiam, não entendiam.
DENT: Como era visto entrar para fazer um doutorado [na ciência?]
BORTOLINI: Ó, uma] coisa assim, ó. O fato de tu entrares na UFRGS sempre foi e
continua sendo uma coisa de prestígio. Então o fato de tu estares na UFRGS é
00:16:00prestigioso, mesmo que eles não saibam o que tu está fazendo. "Ah, ela tá na
UFRGS." Sabe? "O que que ela tá?" "Não sei, só sei que está na UFRGS".
Sempre foi uma coisa prestigiosa.
Eles sabiam que eu fazia uma cosia importante, poderia ser importante, mas não
sabiam que era. Então era mais ou menos assim. [risos] Não sabiam, sabiam que
era na UFRGS, então é importante. "Mas exatamente o que que é, não sei."
DENT: E quando é que explicava que ia estudar, por exemplo, a dissertação do mestrado?
BORTOLINI: Do mestrado? Pois é, daí como eu fazia a conexão com a história
ficava mais fácil. Através dos dados genéticos nós vamos tentar recortar a
origem dos africanos que chegaram no Brasil. Pesquisar melhor. As pessoas
entendiam mais ou menos. Então aí: "ah que interessante" e tal. E foi indo assim.
Depois, quando entra a palavra DNA no mundo das pessoas, aí as pessoas começam
a ter mais interesse em saber. "Ah, tu estuda o DNA? O que que é que o DNA?
Como é que é a história?" As pessoas perguntam. Aí passou a ser... Porque
antes era tudo muito nebuloso.
E também, as ferramentas que a gente tinha eram muito pobres para a gente
resolver os problemas que a gente perguntava. Questões de evolução
biológica, dinâmica, tudo que eu faço hoje, dinâmica de mestiçagem,
evolução das populações humanas depois que saíram da África. Tudo a gente
tentava responder por polimorfismo de proteína, que era uma cosia muito singela
para tentar responder as perguntas que a gente fazia.
Então a gente fazia/a gente tirava leite de pedra, como a gente diz. Conseguir
tentar fazer alguma coisa com ferramentas que respondiam de maneira muito pobre.
Não só a parte experimental, como a parte de análise também. A gente tinha
00:18:00que fazer a mão, fazer análise na mão.
Aí depois veio computador. O primeiro computador que eu usei foi no meu
mestrado, e não era nem na universidade, era na casa da professora Tania. Rodar
umas análises de distâncias genéticas entre as populações negras, que eu
estava estudando, e as populações da África.
Então as análises também eram bem menos robustas. O acesso às maquinas era.
Eu tinha feito tudo à mão, aí a professora disse: "não, mas agora eu tenho
um computador na minha casa, pessoal, tu vais poder rodar as análises." " Aí
então, hoje eu vejo a robustez de uma tese de doutorado.
Depois do doutorado já entrou com a parte de DNA. Já melhorou, já melhorou um
pouco. Mas o meu mestrado eu acho que foi algo muito singelo, hoje eu vejo como
algo muito singelo. Foi uma tentativa de responder questões da origem dos
africanos que vieram, com ferramentas que não poderiam responder o que eu
estava querendo perguntar. Embora a gente fez várias tentativas.
DENT: Poderia explicar um pouco mais o desenho da tese, da pesquisa da tese?
BORTOLINI: Do mestrado?
DENT: Do mestrado e do doutorado, já passando para...
BORTOLINI: Foi um pouco assim: eu cheguei, eu me lembro, eu disse para a
professora Tania e para o professor Salzano: "eu quero trabalhar com evolução
humana, genética de populações." " E eu nunca vou me esquecer que a
professora, acho, ou o professor Salzano, disseram assim: "chegou para nós umas
amostras de isolados negros da Venezuela, de uma colaboradora. E nós temos
outros isolados negros do Pará, etc. Te interessa?" "Me interesso." "
Então foi uma amostra de conveniência. Assim, era uma amostra interessante,
estava chegando, de isolados negros. Aí eu fui começar a estudar a história
da África no Brasil, história da escravidão e tudo que podia, que já tinha
sido publicado sobre a história da escravidão e sobre a África naquele
00:20:00momento. A biblioteca é aqui do lado, né? Então eu li tudo para fazer essa
ponte entre genética e história, para tornar a coisa, assim, mais interessante.
Eu sempre achei que falar de evolução humana e fazer genética humana, tu tens
que estar contextualizando, tu vai contar uma história da genética de
populações. Não é só assim... Eu me negava a querer descrever
polimorfísmos. Isso me negava. Ah, na população tal tu encontra tal alelo. Me negava.
Não vou fazer nada descritivo, então vou contextualizar em algo que interessa
e que pode contar uma história relevante para resgatar a história das
populações descendentes de escravos que chegaram no Brasil, que estão no
Brasil. Ou que estavam na América, no caso das populações da Venezuela.
Daí deu para o mestrado e o doutorado, eu uso as mesmas populações. Mas dai
já com DNA mitocondrial. Então eu acho que o meu estudo com DNA mitocondrial,
que foi publicado ainda na Human Biology em 1997, foi o primeiro estudo de DNA
mitocondrial com populações não norte americanas, não europeias.
E são sequências que podem, assim... por isso que eu digo, a questão da
evolução da tecnologia é uma coisa impressionante. Aquele dado do DNA
mitocondrial pode ser usado até hoje. Porque aquilo lá, se alguém quer
estudar população de descendentes de escravos, pode pegar aquelas sequências
e usar. Sabe? Então é um dado absolutamente fidedigno, pode usar ad eternum,
que serve, que se presta pra isso.
DENT: E essas amostras que o colaborador da Venezuela mandou...
BORTOLINI: Professora Zulay Layrisse, é uma pesquisadora muito importante,
casada com um pesquisador importante da Venezuela. Eram acordos com o pessoal do
00:22:00Salzano, naquela época se fazia muito isso. E teve uma amostra que eu mesma
coletei, isso também é uma novela. Fiquei sabendo, através de uma reportagem
na Zero Hora, uma tia minha falou: "ah, você está estudando grupos, eu vi uma
reportagem na Zero Hora de um grupo chamado Paredão. Aqui no interior." Perto
daqui, na subida, na grande Porto Alegre.
E eu fui até lá com o meu marido. Foi difícil coletar com eles, coletar
deles. E a gente teve que conversar, na época era só consentimento oral.
Porque a gente não tinha, né? Explicar foi muito difícil. Assim, eu consegui
uma amostra, acho que umas 50 pessoas pelo meu cálculo. Hoje é um quilombo,
foi reconhecido, um lugar muito bonito, tinha aquelas famílias.
Mas eu fui lá, simplesmente fui lá e comecei a conversar com eles. E consegui
de alguns, foi assim uma coisa que hoje eu não faria, hoje não teria ne
sentido fazer, né? Trabalho com outros tipos de amostragem.
E na época eu fui, e o Clenio [Doete Machado] foi também. Fui umas duas vezes
e teve uma coisa que me incomodou muito lá na comunidade. É uma comunidade
muito pobre e eles pediam coisas, e então eu não me senti muito confortável
também. Faz uma coleta, mas são pessoas pobres, eu vou utilizar material
biológico deles para fazer meu estudo, eles não vão ganhar nada com isso.
Não gostei, não gostei.
E aí, bom, foi essa experiência que eu tive lá. A gente coletou, usamos muito
esse material para estudos, né? Mas fiquei com essa sensação desagradável,
de ausência de retorno para a comunidade, de alguma coisa. E hoje, a questão
00:24:00da pesquisa científica, acho que já tem que ter um protocolo aprovado por um
Comitê de Ética, com o consentimento assinado pela pessoa. Se sabe que não se
pode dar nada em troca, são voluntários.
Então, naquela época, eu me sentia desconfortável por não dar nada em troca.
Dava umas bolachinhas para as crianças que cercavam, assim. Mas eles pediam,
eles pediam comida, que era para levar comida. E eu ficava constrangida. "Será
que eu levo? Mas aí eu vou estar comprando." " Levava, assim, umas coisinhas
para as crianças, né?
Hoje, se eu fosse fazer, eu não poderia levar nada, nem um copo de água para
eles. Então eu não gostei, assim. Essa, digamos assim, utilização de uma
comunidade pobre para estudo científico, com pessoas sem capacidade de
entendimento do que tu estás fazendo, não sei.
Por isso eu acho que está muito certo em ser avaliado por um Comitê de Ética.
E na época eu me questionei pessoalmente, não tinha Comitê de Ética.
Conversei com a minha orientadora, com o professor Salzano. "Não, é assim
mesmo. Tu tens que conseguir um consentimento deles, os maiores de idade." " A
gente não coletou de crianças. E o consentimento oral é o que vale.
A pessoa tem que ser um voluntário, tem que entender que é um estudo de uma
Universidade. Um chegou a dizer que iria vender o sangue na Santa Casa. "Tu vais
lá para Porto Alegre vender o sangue na Santa Casa." " Eu disse: "Não, não
vai ser isso. É um estudo para saber a origem de vocês e tal."
DENT: E, assim, explicava o estudo? Como explicavam para uma pessoa?
00:26:00
BORTOLINI: Ah, eles sabem. São pessoas muito pobres, né? "Eu estou estudando a
história dos negros do Brasil. Vocês formam uma comunidade remanescente,
vocês conhecem a sua história?" "Ah, ex-escravos e tal." "Então é isso, pelo
sangue a gente consegue ver algumas coisas interessantes sobre a sua origem e
tal." E uma coisa que eu fiz (foi o professor Salzano que disse que era para eu
fazer), era retornar com o sistema sanguíneo, né? A tipagem do sistema ABO
para eles, isso eu que fiz. Hoje é uma comunidade quilombola reconhecida. Lá
tinha uma senhora que era líder, Dona Anita, eu acho, não me lembro bem o nome
dela. Foi ela que me disseram/foi ela que foi o alvo da matéria na Zero Hora e
foi com ela que eu falei. Sem ela não tinha como acessar a comunidade.
Mas te digo que não gostei, não gostei. Justamente por causa dessa questão.
Você ver pessoas pobres, o nível de entendimento certamente era nenhum. E hoje
eu não faria, hoje eu não faria não.
DENT: Então aí a tese de doutorado foi focada nesses estudos de umas...
quantas populações? Eram três? Essas três populações?
BORTOLINI: Eu não me lembro. Eram essas populações isoladas, mais Porto
Alegre e mais Salvador. Aí entravam já de voluntários de bancos de sangue. De
estudos de caso-controle, já tinha grupos trabalhando com estudos
caso-controle. E tinha os voluntários dos controles, né?
E aí já entra essa questão, também, de estudo genético de modo geral,
00:28:00questão ética já entra mais, o que exatamente. Logo quando começa, assim, a
gente tem que definir bem, para ter os pareceres de ética, o doutorado já tem
que ter. Aí a gente tem que definir exatamente o tipo de sistema que você vai
estudar, e no doutorado já entra essa questão.
Eu já lembro, porque no mestrado eu lembro que a gente, bastava, para as
revistas, a gente dizer que eram voluntários. Que tinham sido voluntários, que
tinham sido convidados a participar. E o que a gente tinha era a informação
oral de que eles aceitaram participar do estudo.
Hoje eles não só tem que... tem que ter o consentimento livre e esclarecido. O
termo esclarecido não está ali à toa, esclarecido tem que se garantir que a
pessoa entendeu exatamente o que a pessoa está querendo dizer. A gente não
sabe exatamente o quanto a pessoa vai entender, mas pelo menos, eu acho que eu
hoje me sinto muito mais confortável em coletar...
Tanto que eu vim coletar depois só agora no CANDELA, nunca mais coletei. Eu me
sinto muito mais confortável. Meu conforto sobe, assim, exponencialmente na
medida em que eu percebo que as pessoas estão entendendo o que a gente está
fazendo. Então, CANDELA que já pegou uma amostra de pessoa com nível de
escolaridade superior, as pessoas vindo buscar aquela questão de ancestralidade.
Então aí sim eu me sinto muito confortável em fazer coleta. Então voltei a
fazer coleta, desde essa época, nos anos 90, só agora. Porque é isso que eu
te digo, naquela época eu achei que aquilo não estava muito certo. Era o
procedimento e todo mundo fazia, todo mundo fazia assim.
Chegava na comunidade, falava com a liderança, pediam autorização,
perguntavam para as pessoas se elas aceitavam participar de um estudo.
Explicavam mais ou menos o estudo, fazia a coleta, agradecia a pessoa em um
00:30:00paper que eles nunca iriam ler, enfim.
DENT: E sabes se esses dados foram usados no processo para assegurar [a
identidade da comunidade?]
BORTOLINI: [Não sei, acho que não]. Porque, esse tipo de discussão, acho que
aparece no Brasil no final dos anos 90, anos 2000 né? Acho que não foram
usados, acho que não. Acho que foi político.
[Pausa -- áudio 2]
BORTOLINI: Aonde é que nós paramos? Eu não lembro mais o que eu estava falando.
DENT: Estava terminando um pouco de explicar como mudou, que agora se sente mais confortável.
BORTOLINI: [Mas eu] levei quantos anos? 20 anos para voltar a fazer coleta. Esse
sentimento que eu não me sentia confortável, que as pessoas não estavam
entendendo direito o que eu estava fazendo. Era uma comunidade pobre, eu não
sabia como manejar essa coisa de pobre. Eu estou tendo a participação como
00:32:00voluntário deles no meu projeto de pesquisa, eles são muito pobres.
Eles pedem coisas, para mim dar para eles, eu não sei se eu dou ou se não dou,
se eu posso dar, se eu não vou estar comprando se eu dou, sabe? Ao mesmo tempo
se sente muito mal por não dar, porque estão te pedindo coisas muito simples,
comida. Então foi algo, assim, eu me deparei com uma situação que realmente
eu não gostei. Não gostei, não gostei.
DENT: E comentou que desde essa época já mudou um pouco, bom, bastante, a
regulação por parte da universidade, tanto como o governo. Quando iniciou essa
mudança para ser uma coisa mais formalizada, ou a instituição dos Comitês de
Ética, por exemplo. Lembra mais ou menos, se foi durante o [doutorado?]
BORTOLINI: [Foi durante] o doutorado, porque daí eu já estava trabalhando com
essas amostras e eu tive que argumentar. Porque um dos primeiros pareceres de
ética, eu posso até ver qual é o primeiro que eu tenho sobre o estudo de
populações negras, mas eu acho que é de 1997. Eu argumento que eu vou usar
amostras que eu já tinha coletado e que eu tinha conhecimento oral.
Então, na verdade, o Comitê de Ética, naquela ocasião, ele me deu ok para
usar amostras que eu já tinha coletado. E eu tinha o consentimento oral. Então
eles me atestaram que eu podia usar as amostras, baseado no meu relato, que eu
tinha feito o contato e a coleta seguindo os procedimentos, os cuidados,
seringas descartáveis, com pessoal treinado. Foi o Clenio que foi fazer a
00:34:00coleta, com muita...
E aí eles me deram. E aí eu continuei usando esse parecer de Ética durante o
meu doutorado inteiro, essas amostras. Depois eu não usei mais. Mas durante o
doutorado inteiro, deu cinco artigos científicos, todos com essas amostras.
Essas amostras dos isolados e também de grupos urbanos, que foi aí de
colaboradores. Esses estudos de caso controle, que passavam as amostras dos
controles para ampliar os estudos.
DENT: E comentou um pouco sobre o ambiente na universidade durante a
graduação. Como mudou? Como foram as mudanças durante o doutorado?
BORTOLINI: Ah, foi assim: o que eu percebi foi que, a dinâmica das
complicações eram diferentes. Embora, como eu sempre fiz parte do grupo do
professor Salzano, o professor Salzano sempre teve uma dinâmica diferenciada do
resto, ele estava à frente do seu tempo. Ele já tinha essa noção da
importância da comunicação, que tem...
Afinal, tu faz ciência, tem que chegar na comunidade científica. Então não
adianta ficar se enrolando. Porque mesmo o departamento, a gente tinha alguns
professor ou orientadores que já se aposentaram, que já saíram, grandes
pesquisadores, tinham um jeito de fazer ciência, um jeito mais antigo. Nunca
publicavam, meio o saber pelo saber.
Bom, muito bom o saber pelo saber. Mas qual é o sentido público? O mínimo é
que tu tens que dar o retorno, pelo menos para a comunidade científica. Então
essa coisa, o professor Salzano passou muito. Então, no caso do grupo, com a
influência do professor Salzano, embora eu não era orientada direta dele, mas
a professora Tania tinha sido e era do grupo, já passava essa ideia de que
ciência se faz com os pares.
00:36:00
Então tem que publicar teu achado, não tem que ficar redemunhando com ele pelo
resto da vida e botar em uma gaveta. Ainda mais naquela época, que as teses iam
para as bibliotecas e ninguém lia. Hoje não, hoje as teses estão nos bancos
de teses. Mas naquela época, faltou, né?
Então essa, eu nunca tive problema em publicar, sempre publiquei. Mas isso foi
uma revolução, essa questão das publicações, porque hoje atinge todo mundo.
Hoje quem não se adequa, até aquilo que tu estavas falando, talvez em algumas
áreas isso não esteja fazendo bem para a ciência brasileira.
Talvez para algumas áreas não seja bom, ou talvez nem sempre isso é bom,
porque as pessoas podem artificialmente picotar seu trabalho para aumentar o
número de publicações e a pessoa acaba perdendo o... Então isso se discute
no Brasil. E acho que tem que ser discutido, porque grandes descobertas
científicas podem envolver muito tempo de muita dedicação, e não coisas picotadas.
Mas, felizmente, eu acho que a gente nunca utilizou esse artifício, aumentar o
número de papers, né? Não passou pela nossa cabeça fazer isso. Mas o que eu
noto é que os jovens, que já vêm na iniciação científica hoje, já vêm
com ideia de paper na cabeça. Querem paper e os professores já estão muito
com isso também.
É o que eu tento passar para os alunos também. Fazer ciência, tu podes ficar,
assim, achando massa. É bom, tu te enriquece, mas tu tem que dar o retorno para
a comunidade científica daquilo que tu fez para ver se... botar para ser
discutido. Se não, não é ciência, né? Mas já, desde aquela época, no
grupo do professor Salzano já era assim. E isso foi bom.
DENT: E o ambiente mais geral? Assim, os protestos? Porque durante todo esse
00:38:00tempo estava acabando a ditadura militar. Como estava? Não sei se já entrando
no doutorado...
BORTOLINI: Não, isso foi durante a graduação. Depois, no doutorado, eu já
estava fora disso. Embora casei com um militante político, eu estava fora
disso. Só me envolvi com isso na graduação. Depois já no mestrado e
doutorado já não. Já tinha criança também, já tinha bebê. Eu já não me
envolvi mais com política, militância política. Mas na graduação sim.
DENT: Em que ano entrou para fazer o mestrado?
BORTOLINI: O mestrado eu entrei em 87. Aí eu já estava só pensando em
carreira acadêmica, trabalhar, ganhar dinheiro e sustentar meu filho. Eu não
estava mais pensando em política, não estava mais nessa.
DENT: E aí depois de terminar o doutorado, entrou diretamente...
BORTOLINI: Não, aí foi muito interessante, assim. Porque o seguinte, eu tive
muita sorte. Eu terminei meu doutorado em '96, em agosto de '96 eu defendi o
doutorado. Em dezembro, ou em novembro, teve concurso. Então além... e depois
do doutorado eu tive uma bolsa de pós-doutora da Fapergs.
Então eu não fiquei sem receber nenhum mês. Eu pude, naquele tempo da bolsa
de pós-doutora, eu pude ficar estudando para a prova. Aí eu fiquei estudando,
botei uma escrivaninha no meu quarto, Pedro era pequeninho e eu fiquei
estudando. Aí ele passava e ficava: "mas o que tu tanto estudas?" "
Passei, mas foi sorte. Terminei o doutorado e abre um concurso. "Vou fazer." Aí
fiz e passei.
DENT: E qual era o processo de um concurso nessa época?
00:40:00
BORTOLINI: Tinha 20 candidatos, na ocasião. Era como é agora, era muito
disputado, só que... Era muito disputado, vinha gente de outros lugares. Tinha
vários colegas aqui da UFRGS que estavam terminando doutorado também, eram
doutores fazendo. Não, tinha mestres também. Naquela ocasião não precisava
ter o título de doutor, não. Tinha mestres e doutores fazendo. E aí me saí
melhor, né? Passei.
DENT: E, nessa época, tinha que definir, para entrar no concurso, uma linha de pesquisa?
BORTOLINI: Não, era geral. Isso tem sido uma regra aqui no departamento,
concursos gerais assim. Eu entrei, eu tirei o primeiro lugar. Eu entrei e, logo
em seguida, chamaram quem tirou o segundo lugar, foi a professora Katia. Logo em
seguida o terceiro, quarto, quinto, sexto e sétimo. Sei quem em dois anos
chamaram sete pessoas.
Foi uma coisa, assim, nunca mais na história da humanidade vai acontecer, era
uma vaga. E se aposentou um monte de gente, todas as vagas voltaram para o
Departamento de Genética, e o concurso estava válido. Então até a sétima
colocada pode entrar naquela ocasião, depois daquilo nunca mais.
Hoje, inclusive, as vagas nem voltam para o departamento. As vagas vão para a
universidade, a universidade que daí... Naquela época, todas as vagas do
departamento que tinham se aposentado nos últimos, sei lá, cinco, dez anos,
voltaram em peso. E aí tinha um concurso valendo, válido. Eu tinha entrado,
já estava nomeada.
E aí começou. Segundo, terceiro, quarto, quinto, sexto e sétimo. Até o
sétimo candidato, colocado entrar no concurso.
DENT: E a maioria das pessoas que entraram, eram orientados...
BORTOLINI: Eu já te digo quem são. Eu, a Katia, o José Artur aqui de cima, a
00:42:00Fernanda Bered, a Eliane Bandinelli, a Eliane Kaltchuk, lá do vegetal, e a
Carmem Savietto. Sete pessoas que entraram naquele concurso. Desses, quem tem
atuação na pós-graduação sou eu, José Artur, a Fernanda. Atuação forte
na pós-graduação, né?
DENT: E como era o processo para você de entrar? De ser...
BORTOLINI: Mesma coisa, prova escrita...
DENT: Claro. O que eu quero dizer é a transição pessoal de ser estudante,
para ser professora, orientadora. Essa mudança de ser aluna.
BORTOLINI: Isso é interessante. Deixa eu falar com o Claiton um pouquinho, aí
eu quero falar um negócio bem interessante.
DENT: Tá, vamos pausar aqui.
BORTOLINI: Isso, fazer uma pausa.
DENT: Ok.
Fim da entrevista.