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A base emocional da ciência

“Emoções” tem sido um tema frequentemente suprimido nas análises da história e estudos sociais da ciência. O suposto caráter objetivo da ciência para revelar as leis da natureza e uma maior ênfase em análises epistemológicas das ideias científicas, por muito tempo, provocou um vazio nos conhecimentos sobre a interação e respectivas relações de afeto (positivo ou negativo) entre as pessoas (ou entre as pessoas e seus objetos de pesquisa humanos e não-humanos) durante a sua prática científica. Aliás, a própria ciência moderna nasce de uma suposta clivagem entre o sujeito (com suas subjetividades que afetariam as compreensões) e o objeto (a natureza a ser desvelada).

Salzano e Tânia A Weimer (à direita), com três bolsistas, em momento de descontração. Buenos Aires, 1983

É, entretanto, com uma visada socioconstrutivista e culturalista, desenvolvidas desde anos 1970 e 1980, que a atenção foi dirigida para o papel dos seres humanos como atores sociais na produção do conhecimento científico, tornando-se com isso relevante atentar para a base emocional da ciência. Não é que as emoções sejam sempre ignoradas. Vários cientistas famosos, por exemplo, reconhecem em suas autobiografias a importância das emoções (tais como: medo, alegria, esperança, tristeza, maravilhamento) para o desenvolvimento e sucesso de duas trajetórias científicas; mas elas são percebidas apenas como um aspecto idiossincrático, alegórico que, em última análise, coloca as emoções fora do núcleo essencial da ciência.

Prof Salzano em festa de aniversario, circa 1965

Nossa intenção aqui é, com as narrativas dos entrevistados, por em evidência certa “economia emocional da ciência”, ou seja, algumas expressões subjetivas de aspectos emocionais e afetivos, comuns entre os cientistas e, por vezes, partilhados coletivamente – ora afetuosos, engraçados, perturbadores, traumáticos ou rancorosos -, e que consideramos constituintes do processo de produção de conhecimento em genética humana do grupo em questão. Queremos chamar a atenção para o “eu-científico” que compõe aspectos epistemológicos da objetividade científica. Com inspiração da crítica feminista à ciência, reivindicamos aqui um conhecimento corporificado, situado, centrado no sujeito cognoscente, no qual a própria subjetividade- com suas expressões de afetos corriqueiros – entram como constituintes da experiência do fazer científico dos pesquisadores em genética humana aqui entrevistados. 

Prof. Francisco Mauro Salzano serve champanha na sua festa de aniversário no departamento, julho, 2012.Diferentemente dos textos e documentos escritos, geralmente estáticos e com narrativa bem estruturada, os depoimentos orais expressam, dinamicamente, informações e fatos vividos intermediados por valores, sentimentos, significados e emoções. Por isso propomos aqui a tentativa de identificar nas narrativas alguns aspectos emocionais na vivência científica dos entrevistados, a partir de três frentes:

1) emoções no engajamento à ciência;

2) emoções nas relações entre os cientistas;

3) emoções no fazer científico.

Obviamente produzir conhecimento envolve um processo mental e intelectual. Porém, a ciência é coletiva, e também implica em práticas, ações, agenciamentos e atividades que requerem interações entre cientistas, entre cientistas e seus objetos de pesquisa (humanos e não-humanos), entre cientistas e não-cientistas, o que torna as emoções e manifestações de afetos inevitáveis. Os cientistas são influenciados e influenciam pelas emoções. Sabemos que o trabalho científico é conduzido de maneira competitiva e propositada e, com isso, a motivação e a ambição são fontes de ação para persuadir a comunidade científica a reconhecer a prioridade e originalidade de um trabalho.

Nossas entrevistas explicitam múltiplas formas de emoções no engajamento à ciência. Praticamente todos os relatos sobre as trajetórias científicas expressam sentimentos de filiação, confiança e paixão ao trabalho, além de expectativas e entusiasmo no desenvolvimento das respectivas pesquisas. É também comum a vários dos entrevistados manifestarem um certo ascetismo ao narrarem seus engajamentos com o fazer científico. Emoções negativas como frustração, decepção, indignação ou raiva são mais raros, mas aparecem em momentos das narrativas que versam sobre acontecimentos e situações de pesquisa controversas ou mal sucedidos, como no caso de perdas de amostras biológicas, por exemplo – ver as entrevistas de Maria Cátira Bortolini, Mara Hutz, Verona Zembrzuski.

As emoções nas relações entre os pesquisadores (entre os próprios entrevistados) também merece aqui destaque. Elas passam sobretudo pela expressão de sentimentos de amizade, afetuosidade, respeito, admiração, cumplicidade e confiança. Esse é o caso das menções dos ex-alunos e professores atuantes no Departamento ao apontarem sua relação amistosa e de admiração a Francisco Salzano. O próprio Salzando também suas ligações afetivas com James Neel durante sua estada em Ann Arbor. Ou na relação pessoal próxima, tecidas por laços de confiança e cumplicidade mútua expressas na história oral do técnico de laboratório Girley Simões e Salzano, cujos vínculos profissionais e interpessoais tornaram possível a execução bem-sucedida da série de trabalhos em populações indígenas nos rincões do Brasil.

Carta de Francisco Mauro Salzano ao James V. Neel, 15 de dezembro de 1957, avisando "a new member of my F1 is expected next June."

Contudo, são as emoções no fazer científico o que mais nos surpreende em alguns depoimentos aqui apresentados. Duas narrativas merecem aqui atenção especial: a de Girley Simões e a de Verônica Zembrzuski, ambos envolvidos com o trabalho de campo. A história oral de Simões é a que mais manifesta emoções. Diferentemente dos professores, ele não se expressou por uma narrativa articulada, linear e encadeada. Mas é com ele que conseguimos captar os sentimentos produzidos pela experiência do trabalho de campo com as populações indígenas nos anos 1960. É com Simões que percebemos o arrebatamento, a euforia, o choque e o deslumbramento com o extraordinário, como numa aventura em um mundo exótico e modos de vida desconhecidos. Ao mesmo tempo, sem deixar de demonstrar as emoções negativas: nojo, repulsa, medo e constrangimentos vividos em situações de extremo risco ou nas interações com os sujeitos objetos da pesquisa.

Verônica Zembrzuski é dentre os entrevistados a mais nova. Ela também foi a campo coletar dados e amostras biológicas em populações indígenas. E também expressa a sensação de se vivenciar uma aventura no desconhecido. Mas é na sua narrativa que podemos interpretar uma inflexão epistemológica em que as emoções são constituintes, não apenas da experiência do fazer científico, mas das relações entre cientistas e sujeitos-objetos e do próprio conhecimento em si. Zembrzuski põe no centro da sua narrativa os laços afetivos, de respeito, intimidade, amizade e confiança, tecidos junto a alguns membros de famílias Xavante. Sua fala explicita o modo como tais relações acabaram por compor, em campo e no laboratório, condutas éticas e os conhecimentos genéticos, situados e incorporados, produzidos por ela.