Ética na pesquisa em genética humana
Para lançar luz ao tema da ética na pesquisa em genética humana enunciada nas histórias orais dos geneticistas, vale trazer a fala de uma das pesquisadoras do Departamento de Genética e Biologia Molecular da UFRGS, Tânia Weimer:
O projeto tinha que ser aprovado no departamento. Mas em termos como tem hoje um comitê de ética, não existia. Naquela ocasião, não existia um comitê de ética. O que a gente teve... A gente aprovou o projeto nos hospitais onde a gente, na Santa Casa a gente teve que ter aprovação no hospital para fazer. Mas não existia um termo de consentimento livre e informado como existe hoje, não existia. Mas a gente teve aprovação do hospital onde a gente fez a coleta e das escolas onde fez as coletas. E das famílias.
Esse é um dentre os vários trechos presentes no conjunto de entrevistas que tocam na compreensão dos pesquisadores sobre ética informal e os efeitos da regulamentação ética formal na genética humana desde a década de 1990. Nessa parte, gostaríamos de chamar a atenção não só para a história da bioética, em termos gerais, mas para a historicidade da ética na pesquisa em genética humana (e em especial nas populações vulneráveis, como as indígenas), a partir dos relatos das experiências dos próprios geneticistas. Historicidade porque a trama histórica sobre os procedimentos éticos informais e formais para a pesquisa em seres humanos – e a maneira com que os pesquisadores vivenciaram essa história – interferem diretamente nas práticas de investigação desse campo científico hoje, no plano individual e coletivo.
Nosso propósito é, com os depoimentos aqui apresentados, refletir e discutir questões como: que tipo de cuidados éticos os cientistas, individualmente e subjetivamente, tomavam antes das normativas do Conselho Nacional de Saúde (Res. CNS n.o 196/96) para pesquisas com seres humanos? De que forma a normatização desde os anos 1990 afetou o desenvolvimento das pesquisas em genética humana? De que maneira os geneticistas expressaram as transformações de uma ética informal para a ética regulamentada?
Uma maior preocupação em se definir limites éticos para a realização de pesquisas médico-científicas em humanos data do contexto pós-guerra, com o Código de Nuremberg de 1947, provocada pela divulgação das atrocidades por detrás de experimentações realizadas por médicos nazistas. Nele já se previa a necessidade de consentimento, conhecimento sobre os procedimentos e riscos, a livre-escolha do participante, por exemplo. Anos depois ele foi sendo aprimorado e revisado em várias diretrizes internacionais, que passaram a incluir, aos países signatários, a exigência de se criar Comités de Ética em Pesquisa, e, em termos gerais, uma ênfase na preservação dos direitos humanos, e na necessidade do respeito à dignidade da pessoa participante como objeto de uma investigação científica.
No Brasil, a primeira normativa editada pelo Conselho Nacional de Saúde é de 1988, pós-redemocratização, mas era pouco específica e não teve adesão na comunidade médico-científica nacional. Deixava espaço para uma conduta informal, baseada nas percepções subjetivas, sobre como proceder eticamente, para evitar riscos e preservar os interesses dos sujeitos participantes. Essa conduta informal aparece em algumas das entrevistas, quando os geneticistas, antes de serem orientados por diretrizes e normativas éticas formais, relatam suas experiências de seleção dos participantes – ver entrevista de Maria Cátira Bortolini –, as condutas para o esclarecimento dos procedimentos, os trâmites de aprovação institucional para execução dos projetos ou de que forma eram obtidos os consentimentos para colheita e uso das amostras e dados biológicos; além da falta de preocupação com qualquer retorno dos resultados às populações participantes – vários entrevistados valorizam o retorno como avanço bioético satisfatório para os sujeitos e pesquisadores.
A normativa de 1988, após ampla discussão e participação de setores da sociedade, acabou por ser aprimorada, dando origem à resolução Res. CNS n.o 196/96, que estabelece então diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos, válidas até o hoje. É nela que se estabelece, dentre outros, o princípio básico de que “todo projeto de pesquisa que envolva ser humano (individual ou coletivamente, no seu todo ou em suas partes) deve ter a aprovação prévia por parte de Comitê de Ética de Pesquisa (CEP) institucional.”
Entretanto, tal desenvolvimento da bioética no Brasil interseccionou-se com movimentos sociais mais amplos, que acabaram por tornar a pesquisa genética em certas populações, como as indígenas, um assunto sensível. A partir dos anos 1990, as repercussões dos debates internacionais pós-coloniais e sociopolíticos sobre a investigação biomédica (incluindo a genética) nas populações indígenas chegaram ao Brasil (como aconteceu no caso da oposição ao desenvolvimento do Human Diversity Biological Program), desencadeando reações tanto de apoiantes não governamentais e governamentais dos direitos indígenas, como das próprias comunidades indígenas - ver “Povos Indígenas do Brasil” (1991-1995, p.22).
Uma das tensões mais emblemáticas da história da ética na ética da pesquisa em genética de populações humanas, no Brasil e no exterior, diz respeito ao destino de amostras biológicas de grupos indígenas brasileiros. Os debates públicos e judiciais decorrentes da denúncia da comercialização por empresas de biotecnologia de amostras biológicas de grupos indígenas amazônicos (Suruí e Karitiana) em meados dos anos 1990, acabaram por promover a necessidade urgente de regulamentos legais relativos à recolha de material biológico de populações vulneráveis (e de DNA e material relacionado, em particular).
O eco dessas lutas influenciou a criação e aperfeiçoamento da legislação pública sobre os limites éticos da investigação biológica das populações indígenas, incluindo as mudanças legais no Brasil no início dos anos 2000. É nos anos 2000 que o Conselho Nacional de Saúde do Brasil (CNS) promulgou a Resolução No. 304 em 9 de Agosto de 2000. Esta resolução estabeleceu diretrizes e normas específicas para a investigação científica sobre as populações indígenas no país. Para além de reforçar os procedimentos éticos de investigação, definiu o conceito de "comunidade indígena", instituiu limites ao envolvimento estrangeiro em estudos biológicos, e salientou a necessidade de proteger e respeitar as culturas locais. Em 2004, outra resolução (n.º 304 de 8 de Julho de 2004) propôs regulamentos éticos específicos sobre estudos genéticos humanos, incluindo normas para a recolha, utilização e arquivo de material biológico humano e, naturalmente, proibições de venda destes materiais sem autorização prévia da própria comunidade.
A maioria dos geneticistas entrevistados vivenciaram os efeitos dessas inflexões. Com as entrevistas percebemos que a necessidade de se respeitar os trâmites normativos para a aprovação das pesquisas pelo CEP impactou a prática de pesquisa, gerando procedimentos burocráticos longos e preocupações éticas que não existiam até então. Vale a pena acompanhar tais mudanças no depoimento de Mara Hutz, no qual ela manifesta certa impaciência com a burocracia e indignação com a dificuldade de se obter dados biológicos novos. Hutz chega a manifestar certa frustração com as incertezas decorrentes do trâmite burocrático: “virou pesquisa de alto risco”, segundo ela.
A mesma impaciência é expressa nas falas de Salzano, especialmente quanto à demora do processo de aprovação junto aos órgãos reguladores como o CONEP e às várias outras instâncias institucionais – incluindo as próprias comunidades indígenas – encarregadas de pareceres sobre procedimentos exigidos para resguardar as populações indígenas durante a pesquisa. Os relatos de Salzano são particularmente interessantes por demonstrarem, na prática, o contraste entre condutas de pesquisa sob a ética informal e formal.
A burocracia e as exigências do CONEP provaram ser um empecilho tão restritivo que, mais recentemente, os geneticistas da UFRGS pararam de coletar novas amostras em populações brasileiras. Mas isso não impediu que eles continuassem suas investigações, em nome da Ciência, quer em amostras de colaboradores de outros países - onde as exigências éticas para aprovações oficiais são mais fáceis de obter- ou utilizando-se de amostras armazenadas e recolhidas sob regimes éticos anteriores.
Contudo, se à primeira vista as falas sobre as transformações nas regulamentações éticas ecoam impaciência ou reclamações da burocracia restritiva limitante, nas frestas de vários depoimentos elas aparecem também como potência de mudança nas práticas: nos esforços para considerar a situação de vulnerabilidade dos sujeitos e respeitar e preservar os seus interesses; na provocação de reflexões sobre o benefícios da genética para as populações estudadas; no reconhecimento da relevância de se retornar o resultado das pesquisas aos sujeitos investigados. E aqui convidamos a acompanhar na entrevista de Verônica Zembrzuski como uma prática ancorada nos novos preceitos éticos suscitou outras abordagens e outras formas de interações entre pesquisador e sujeitos da pesquisa.