00:00:00DENT: Hoje é o dia três de julho de 2014, e eu sou Rosanna Dent, doutoranda em
História e Sociologia das Ciências da Universidade da Pensilvânia e tenho o
prazer de falar de novo com o professor Francisco Mauro Salzano. Então,
professor, muito obrigada pelo tempo.
SALZANO: Tudo bem.
DENT: Eu queria iniciar com uma pergunta que eu fiz para algumas outras pessoas
e que eu não sabia como o senhor ia responder. Que é essa questão de se
tivesse que se identificar com uma disciplina acadêmica específica, qual seria
a disciplina que o senhor, assim uma área acadêmica, qual seria? Seria a
genética, seria a antropologia? Como se identifica como profissional acadêmico?
SALZANO: Não, geneticista.
DENT: [Risos]
SALZANO: Sem dúvida alguma. Eu sempre fui geneticista e tive interações com
outras disciplinas, mas basicamente eu me considero um geneticista.
DENT: E a sua formação inicial foi em Ciências Naturais.
SALZANO: Isso.
DENT: Em História Natural. E depois o senhor fez doutorado, fez pós-doutorado
na genética e passou daí dos estudos sobre drosófila para estudar
populações humanas.
SALZANO: Isso.
DENT: Aí entrou no mundo da antropologia.
SALZANO: É.
DENT: Em muitos sentidos. Então, eu queria saber um pouco depois dessa
formação mais formal na área da genética, como era o processo de se formar
assim para poder dialogar com os antropólogos e com as questões mais de
00:02:00migrações, arqueologia, linguística...
SALZANO: Isso.
DENT: Como aprendeu trabalhar nessas áreas?
SALZANO: Isso. Não, então lá em Michigan, além dos cursos que eu fiz em
genética, eu fiz, creio, pelo menos um curso e interagi bastante com alguns dos
professores do departamento de antropologia de lá que estão bastante
relacionados também com a genética humana, o professor Neel. Dos mais
importantes dessas pessoas, que inclusive me influenciaram sem dúvida, é o
James Spuhler, que era professor lá em Michigan. Depois saiu de lá e foi
lecionar em outras universidades, mas que também foi... uma pessoa muito
importante nessa área da antropologia biológica e... Antropologia biológica
basicamente. E depois disso a gente teve vários contatos, quando eu voltei para
lá, também em conferências internacionais. Então foi realmente um grande
amigo meu, na verdade. Da antropologia ele é a pessoa chave.
00:04:00
E depois aqui, quando eu voltei para o Brasil, eu raciocinei da seguinte
maneira: "Tá, eu vou estudar índio, mas não tenho a menor ideia do que seja
um índio brasileiro". [Risos]
DENT: Um-hm.
SALZANO: E aí eu entrei em contato com diversos antropólogos, especialmente da
USP. E tanto para questões de trabalho de campo, como também da relação ao
conhecimento geral da antropologia. As pessoas mais importantes aí foram o
Baldus. Não me lembro do primeiro nome dele.
DENT: É...
SALZANO: Em todo o caso isso tu verifica.
DENT: Uhum.
SALZANO: E o Egon Schaden também, embora o Schaden, na verdade, ao longo do
tempo tenha diversificado o interesse e trabalhado com populações, com
problemas não indígenas. E o Herbert Baldus. Herbert Baldus é o primeiro
nome, e o Harald Schultz também que era o orientado do Baldus e que tinha um
00:06:00extenso trabalho de campo entre os indígenas. Então eles foram três das
pessoas mais importantes que eu contactei logo no início. Aqui em Porto Alegre
era o Padre Rambo. Balduíno Rambo, ele era o catedrático de antropologia daqui
da faculdade de filosofia e ele tinha também uma... Embora o interesse
principal dele fosse botânica, curiosamente, ele no momento em que assumiu a
cátedra de antropologia, ele realizou também vários trabalhos de arqueologia
basicamente, mas também ele fez contato com populações atuais. Então também
busquei informação também com ele sobre isso.
E posteriormente, no momento em que se começou a trabalhar com os Xavantes
então aí eu, além do David Maybury-Lewis, uma pessoa muito importante na
interação foi o Roberto Cardoso de Oliveira, que estava na época com um
programa geral de investigação com o David e outras pessoas sobre os Jê centrais.
00:08:00
Então vamos dizer que... bom, posteriormente, logo no início na verdade eu me
associei à Associação Brasileira de Antropologia e participei de vários
congressos. Na verdade, logo no início me indicaram para o comitê científico
da ABA e nessa condição eu interagi com diversos antropólogos importantes da
época. E participei de vários congressos da ABA. E nesse caso então tive
interação com vários antropólogos e tal.
DENT: Poderia comentar um pouco mais sobre as atividades que realizaram no
comitê científico da ABA? Como era o trabalho que o senhor fez lá? Quais eram
os objetivos do comitê?
SALZANO: Pois é, a ABA estava no início. Naquela época o número de
associados era pequeno e... praticamente não havia nada de antropologia
biológica. Então, possivelmente devido a isso me indicaram. E também não
havia... As eleições eram tipo um arranjo entre amigos. Não havia grandes
problemas de eleição disputada, essas coisas.
00:10:00
Então, foi nessa base que eu trabalhei com vários membros da associação e
fiz parte de alguns dos congressos. Entre as pessoas importantes também da
antropologia com a qual eu interagi bastante ao longo desses congressos foi com
o Sílvio Coelho dos Santos que montou o Programa de Pós Graduação em
Antropologia na Universidade Federal de Santa Catarina.
E bom... Quem mais? Ah, também fiz contato, lógico, com o Museu Nacional. Na
época, o Roberto estava lá no Museu, o Castro Faria, o Luiz de Castro Faria
foi também muito importante. Ele participou também de um congresso, de um
simpósio que eu organizei. E ele era, vamos dizer, o decano da ABA durante
muitos anos. E ele fez uma revisão muito boa lá na década de 50, por aí,
sobre a antropologia biológica. Embora, na verdade, as pesquisas dele
envolveram mais a parte social do que propriamente a antropologia biológica,
mas ele era médico, eu creio.
Então também tive boa interação com ele, também com aquela arqueóloga.
00:12:00Arqueóloga não. Como é o nome dela? Marília Alvim. Tem no meio uma...
Marília de Castro Alvim eu acho que é, que era a pessoa mais conhecida nessa
parte de antropometria de material ósseo. Na parte de crescimento também teve
a Maria Julia Pourchet e que no fim também interagiu bastante comigo. Bom, tem
também uma pessoa chave e com a qual eu interagi bastante foi o... Não é
Luiz, é... Azevedo. Como é o nome dele?
DENT: Ah...
SALZANO: Espera aí. [F. Salzano procura o nome numa publicação ao outro lado
da sala].
Thales, Thales com "TH". Thales de Azevedo. Ele é da Bahia. Em Belém tinha o
00:14:00Napoleão Figueiredo que também era da antropologia cultural principalmente. E
vários outros. Não vou entrar em muitos detalhes.
DENT: Sim. Quando foi a primeira vez que o senhor fez trabalho de campo junto
com um antropólogo social? Foi...
SALZANO: Foi com os Xavante.
DENT: //Com o David?//
SALZANO: //Com o David.// É.
DENT: Poderia comentar um pouco como surgiu a ideia de ir junto com ele,
trabalhar com ele, fazer essa parceria interdisciplinar? Não sei se pode
qualificar assim: como tudo é parte da antropologia, mas como geneticista,
trabalhando com antropólogo social não é uma coisa agora tão comum. Como
surgiu essa ideia, como desenvolveu essa parceria com o David para esse estudo
com os Xavante?
SALZANO: Isso foi na base desse programa que nós montamos, o professor Neel e
eu, e outros, de investigação, vamos dizer, microevolucionária, de evolução
das populações atuais indígenas. E como está lá no documento da WHO, a
00:16:00gente considerava que todos os aspectos da história da vida dessas populações
tinham basicamente algum interesse pela parte biológica.
Então o Neel especificamente convidou. Soube que o David tinha feito trabalho
de campo com os Xavante, convidou o para nos reunirmos com ele para fazer esse
trabalho. Bom, a nossa primeira expedição tinha outro antropólogo físico que
era o Keiter, Friedrich Keiter.
DENT: E como era o processo de trabalhar junto com eles no campo? Assim chegar
no campo e cada um tinha responsabilidades diferentes, mas como era? Como era a
experiência? Como compartilharam o tempo, a conversa? Qual era o que acordava
David como um antropólogo que já tinha ficado oito meses naquela comunidade?
SALZANO: É ele... Não, em geral a convivência foi excelente. Nessa primeira
vez então tanto com o David, como com o Keiter foi muito boa. O Keiter, não
sei se foi antes ou depois, ele fez um estágio aqui em Porto Alegre também. E
era daquela corrente tradicional de antropólogos físicos, digamos, da
00:18:00Alemanha. Então ele contribuiu mais na parte de morfologia e era muito simpático.
DENT: [Risos]
SALZANO: [Risos] O Neel dizia que quando ele acordava, ele ia olhar e estava o
Keiter já de pijama olhando as impressões digitais dos indígenas. E depois eu
estive lá em Hamburgo com ele também e infelizmente ele morreu em um acidente
de avião com a esposa. Conheci a esposa dele também. Era jovem e bonita.
DENT: E como era a interação do David no campo com a comunidade? Ele já
conhecia a comunidade...
SALZANO: [Ah, sim. Ele podia falar...]
DENT: Vocês chegaram lá e como era o momento de chegar, a interação dele?
Ele apresentou vocês? Como era?
SALZANO: Não, a apresentou foi com o chefe do posto.
DENT: O Ismael Leitão.
SALZANO: Isso, é. Posteriormente ele nos ajudava na tradução, na parte de
língua e tal. E eu tive também muita interação com ele na montagem das
genealogias porque quem ficou encarregado das genealogias fui eu. Então eu
obtinha as informações sobre a família nuclear na época da coleta dos dados
genéticos. E depois nós trabalhamos juntos na montagem da genealogia geral da
00:20:00aldeia, digamos. Então foi muito importante.
Ele esteve aqui também em Porto Alegre. Deu um seminário para nós aqui para o
curso. Mostrando os cantos... Trouxe uma gravação dos cantos Xavante. Foi um
sucesso. [Risos]
DENT: Uhum. E ele aí no momento de montar as genealogias, vocês fizeram esse
trabalho juntos no mesmo lugar, ou estavam fazendo à distância pela correspondência?
SALZANO: Não, em boa parte foi pessoal. Contato pessoal. Não teve por
correspondência. Acho que se teve, foi pouco. Foi mais a interação pessoal no
próprio campo, eu acho.
DENT: Fizeram na aldeia mesmo?
SALZANO: E também quando ele veio aqui, a gente olhou.
DENT: E ele fez parte das reuniões em Ann Arbor quando estavam preparando o
manuscrito para mandar para publicar? Ele esteve lá?
SALZANO: Não houve uma reunião formal não. Então, o Neel preparou o primeiro
draft, rascunho, e circulou entre os diferentes autores. E ele deu as sugestões
por carta e eu dei também. E depois a gente revisou tudo.
DENT: E qual era o papel de incluir um antropólogo sociocultural nessa
pesquisa? Pode parecer uma coisa muito óbvio, mas poderia comentar quais eram
00:22:00os temas, ou os conceitos mais importantes que abordava a presença daquela
pessoa para ajudar com o trabalho?
SALZANO: Principalmente na parte da reprodução porque a reprodução em grupos
tribais é muito influenciada pelos regulamentos socioculturais. Então essa
questão das clãs e esses outros tipos de unidades socioculturais que podem ou
não estar associados a uma unidade biológica.
Portanto, no momento em que se eu participo de um clã e por isso não posso
casar com uma outra pessoa de outro clã, isso tem influências genéticas
óbvias. E também na questão da cultura como influenciando as migrações.
Padrões de parentesco, unidades... Padrões de parentesco e em termos de
cônjuge também, entender se o regulamento tribal é matrilinear, ou
00:24:00patrilinear, etc. Tudo isso tem influência clara na variabilidade genética.
DENT: E encontrar o David foi parte da decisão para estudar os Xavante, para
escolher como povo para estudar os Xavante, ou já era decidido estudar os
Xavante e depois encontraram o antropólogo? Lembra como era a ordem de eventos?
SALZANO: Olha, aí não sei. Acho que foi mais... Se discutiu muito com o Neel.
Eu discuti muito com o Neel... qual o grupo que seria mais apropriado para o
início dos trabalhos, mas a decisão final dos Xavante deve ter sido uma
combinação de circunstâncias que envolveram também o Roberto Cardoso de
Oliveira e o David. E também o fato desse funcionário do então SPI. Como é o
nome dele mesmo?
DENT: Ismael Leitão.
SALZANO: Do Ismael também, ter tido uma longa experiência com eles. Ele
também falava Xavante. Então acho que foi uma combinação de circunstâncias
00:26:00que se deu nesse primeiro trabalho.
DENT: E o senhor lembra quais as discussões sobre qual seria o grupo mais
apropriado? Quais eram os assuntos mais importantes nessa conversa de por que
escolheram tal grupo e não tal outro?
SALZANO: Não, basicamente eles... A condição inicial era grau razoável de
isolamento com a comunidade envolvente. E, portanto, pouca influência de
casamentos interétnicos. O isolamento em si desses grupos, tanto geográfico,
quanto biológico. Porque a ideia do Neel justamente era fazer uma
extrapolação entre os grupos tribais atuais e aqueles do passado, na
pré-história. E pra isso então se procurava grupos que estivessem menos
influenciados por fatores não tribais.
DENT: Teve outros aspectos também que eram importantes além dessa questão de
serem isolados?
SALZANO: É. Basicamente era isso. Naturalmente o tipo de acesso ao local
também influía porque as amostras teriam que ser encaminhadas para o
00:28:00laboratório o mais rápido possível. Então era indispensável que ao lado da
aldeia ou próximo houvesse um campo de pouso para avião leve.
DENT: Uhum.
SALZANO: E a disponibilidade de pilotos para irem até lá, lógico.
DENT: No momento de escrever, de preparar o manuscrito juntos, com esse grupo
interdisciplinar, tinham coisas que vocês não... tinham que chegar a um
acordo, para concordar. Coisas que no início não concordavam, tinham visões
diferentes de um aspecto do manuscrito e que tinham que negociar até concordar?
SALZANO: Não. Quer dizer, divergência forte não houve. Pode ter havido
algumas divergências quanto à ênfase na redação desse e de outros artigos,
mas que sempre foi mais ou menos contornada em termos de uma concordância de
todas as partes. Então também era questão básica de que todos concordassem
com a redação final dos artigos.
DENT: Naquela época, na década de 60, 70, o senhor trabalhou bastante em
00:30:00colaboração com a antropologia cultural. E poderia descrever um pouco como era
essa relação entre o que nos Estados Unidos seriam subdisciplinas da
antropologia, mas aqui não tem esse mesmo sistema de quatro campos exatamente.
SALZANO: Isso.
DENT: Mas como era nesse momento inicial, ABA se estava formando, pesquisas com
povos indígenas estavam crescendo bastante, o senhor estava fazendo esse
trabalho. Como era a relação entre as subdisciplinas naquela época?
SALZANO: Era razoável de boa interação devido às pessoas eram poucas, mas em
geral, apesar desses contatos e da interação, havia pouca... Interação
pessoal sim, mas interação de conceitos entre esses quatro campos famosos aí
da antropologia é pouco, pouco.
Na verdade, um grande amigo meu que também participou ativamente dessas
reuniões foi o Aryon Dall'Igna Rodrigues, que é um grande especialista em
línguas indígenas. Então ele representava a linguística nessas reuniões.
00:32:00Então era a parte cultural, a parte biológica era eu e mais algumas poucas
pessoas. Linguística era principalmente o Aryon. E a arqueologia praticamente
estava fora das reuniões da ABA. Eles faziam reuniões separadas. Mas houve um
programa forte de estudos arqueológicos naquela época patrocinados pela
Smithsonian com a Betty Meggers e o marido dela. Geralmente a gente diz o marido
e a... Mas eu estou me lembrando agora da mulher. [Risos]
DENT: [Risos]
SALZANO: A mulher que sobreviveu ao marido, não me lembro o nome dele agora. [Risos]
DENT: [Risos]
SALZANO: Mas então fizeram um programa nacional de arqueologia brasileira na
qual então houve bastante influência dessas pessoas na comunidade
antropológica do país, digamos.
DENT: E com o crescimento do campo da antropologia, mais programas de
pós-graduação, mais financiamento nas décadas de 80, 90, foi mudando a
00:34:00facilidade para trabalhar com antropologia sociocultural para os estudos mais biológicos?
SALZANO: É. Então houve uma reviravolta na história da ABA, numa época
determinada que acho que era década de 70 por aí, na qual então os jovens se
rebelaram contra a elite dos intelectuais lá dos dirigentes. E aí houve então
uma revolução na história da ABA. Essa foi uma reunião que ocorreu em Recife
e que deu muita confusão inclusive porque o presidente na época não queria
aceitar essas reformas. Era o René. O primeiro nome dele era René. Agora não
me recordo do sobrenome dele. Mas pode ver na história da ABA, ele está lá
como presidente.
E aí então houve esse choque de gerações e aí o Castro Farias assumiu a
presidência e a partir daí houve um aumento extraordinário do número de
participantes vinculado aos programas de pós-graduação. E aí se tornou mais
00:36:00específico, mais difícil também o diálogo, digamos.
DENT: Esse primeiro trabalho com os Xavante incluía o David Maybury-Lewis.
Depois quando o senhor fez o trabalho de campo com os Kayapó, estava presente
algum antropólogo social?
SALZANO: A gente entrou em contato também logo no início com o Terence Turner
que tinha feito trabalho com os Kayapós, e ele veio aqui a Porto Alegre,
discutiu comigo a história dos Kayapós. Depois a gente interagiu também com
relação a alguns trabalhos que a gente fez, mas depois ele se afastou mais
para essa parte de defesa dos interesses indígenas e propriamente a parte
acadêmica, digamos.
DENT: E nos próximos viagens para o trabalho... Bom, no trabalho de campo com
os Yanomami era com Napoleon Chagnon.
SALZANO: O Napoleon foi a pessoa chave na parte da antropologia desde o início.
Ele era aluno de... Ele era graduate student.
DENT: [Risos] Doutorando.
SALZANO: De antropologia.
DENT: Ele era doutorando naquela época.
SALZANO: Doutorando, exatamente. E na antropologia de Michigan, então ele foi
00:38:00convidado pelo Neel para desenvolver esse trabalho de interação.
DENT: E nos outros trabalhos de campo aqui no sul com os Kaingang, com os
Guarani, ou na viagem da Alpha Helix, por exemplo. Aí levaram antropólogos
sociais para esses trabalhos, ou depois trabalharam juntos com antropólogos
sociais para análises, ou como era a relação para esses trabalhos?
SALZANO: No Alpha Helix não. A ênfase, na verdade, estava um pouco direcionada
mais para a parte de saúde que então um dos participantes, o Jerry Niswander
do NIH que então fez a parte de médica. E o David Lawrence. Eram os dois
vinculados à medicina, digamos. E então não houve assim uma interação
maior. É, nem havia, na equipe não havia nenhum antropólogo social.
DENT: E no caso do sul, dos Kaingang, dos Guarani do sul, teve alguma parceria
00:40:00com antropologia social?
SALZANO: É, então muito pouca. Na verdade, sempre havia interação, mas nunca
houve trabalho de campo conjunto, ou análise de conjunto de dados. Eu fiz
alguns trabalhos de análise com outros antropólogos como o Roberto do trabalho
dele entre os Terenas. Depois com a Adélia, Adélia Oliveira lá da
Universidade Federal do Pará com outro grupo lá da Amazônia.
Mas os grupos do sul, mesmo porque eles estavam... Os Kaingang já estavam
praticamente com estilo de vida adaptado ao brasileiro, então tinha pouca
influência, deveria ter pouca influência da cultura tradicional sobre os
padrões de cruzamento, essas coisas.
DENT: E a experiência de fazer esses trabalhos juntos com os antropólogos
sociais, como David no início, influenciou a maneira de ver futuros estudos do senhor?
SALZANO: Ah, sem dúvida.
DENT: Em que sentido?
SALZANO: Ah, bom, desde o início eu estava aberto justamente a ter uma visão
00:42:00ampla dos problemas e no momento em que eu obtive informação especializada,
isso condicionou muito dos meus conceitos, não só específico sobre grupos
específicos, como também gerais sobre essa interação. Até hoje entra com a
Cátira e nossa coevolução biologia e cultura.
DENT: Poderia comentar um pouco mais sobre especificamente sobre quais conceitos?
SALZANO: Quais são o que?
DENT: Quais são os conceitos que o senhor...
SALZANO: Os conceitos?
DENT: ... mudou a visão graças a esse trabalho interdisciplinar?
SALZANO: É... primeiro porque me levou a considerar que como a espécie humana
tem a cultura com um papel muito importante, me levou a procurar, relacionar
esses padrões de reprodução e de migração, são os dois básicos pra
genética de populações, com essa visão geral da cultura desses grupos.
E bom, posteriormente com relação às diferentes tribos que a gente estudou,
também aspectos específicos das mesmas. Sobre toda a história de vida desses
00:44:00grupos e a interação com não indígenas e assim por diante. Falar ou não
falar a língua, essas coisas tudo sem dúvida influenciam a história
biológica e estão vinculadas à cultura.
DENT: E o senhor teve alguns escritores da antropologia social que mais gostava
de ler? Lia trabalhos, os mais clássicos da antropologia social em algum
momento? Por exemplo...
SALZANO: Claro, logo no início eu procurei trabalhos bem gerais. E tinha um,
deixa ver se eu ainda encontro ele. [F. Salzano procura o trabalho]. Esse aqui
foi um dos primeiros que eu me aprofundei do Ralph Linton. Tinha tradução brasileira.
DENT: E dos textos mais teóricos como, por exemplo, Claude Lévi-Strauss, ou
alguns desses estruturalistas, o senhor leu esses trabalhos também?
00:46:00
SALZANO: É, em parte né. [Risos] Interagi com também outro antropólogo
importante que depois se suicidou. Como é nome dele?... É um francês que
tinha vários trabalhos entre os grupos Jê, na década de 40 e tal. E depois a
gente participou junto de uma conferência da organização mundial... Essa
reunião da sociedade... Alfred Métraux.
DENT: Uhum. Sim.
SALZANO: Andei lendo algumas coisas dele também.
DENT: E se o senhor tivesse que definir a palavra interdisciplinar, como
explicaria o que significa isso?
SALZANO: É muito complicado.
DENT: [Risos]
SALZANO: [Risos] É... a cada vez mais eu me convenço que interdisciplinaridade
é mais um objetivo do que realmente uma realidade, porque tem o que o Roberto
Cardoso de Oliveira falava de... Como é que é? O fato de a pessoa ter uma
formação específica faz com que ela dificilmente escape desses limites
00:48:00disciplinares. Então o Roberto chamava isso de atavismo cultural, porque embora
a gente tente a interdisciplinaridade, a gente está restrito à formação
pessoal. Então a comunicação... A comunicação em geral entre as pessoas é
complicada. É difícil, ainda mais entre as pessoas com formações diferentes.
DENT: Mas o senhor sempre tenta ser interdisciplinar no trabalho.
SALZANO: Essa é a meta.
DENT: Então e se a definição seria... ou se é mais objetivo que realidade,
por que seguir sempre tentando chegar a esse objetivo?
SALZANO: Porque sem isso, no caso da espécie humana, não se chega a uma
conclusão realmente mais perto da realidade pelo menos. Quer dizer, a espécie
humana, ela é condicionada por um monte de influências que são estudadas por
diferentes disciplinas. Então o enfoque só em uma disciplina determinada é
muito restrito.
00:50:00
DENT: E o senhor tem exemplos de estudos que chegam mais perto dessa meta, desse
objetivo de interdisciplinaridade que toma como exemplo?
SALZANO: O nosso. [Risos] O trabalho do Neel especialmente foi uma revelação
totalmente nova no que se referia ao pensamento da época. Mas lógico, depois
teve uma série de pessoas que também procuraram fazer esse trabalho.
Então esse foi inclusive o objetivo do chamado Programa Biológico
Internacional que fez com que se procurasse essa interação.
A outra pessoa importante aqui que me influenciou foi o Charles Wagley que fez
trabalhos no Brasil e tal. E o grupo lá do Pará.
DENT: E depois de fazer o trabalho com os Xavante, os trabalhos com os Kayapó,
trabalho com os Yanomami, no seguinte parte da vida profissional o senhor voltou
para estudar os Xavante de novo nessa colaboração com o Carlos Coimbra, a
Nancy Flowers e Ricardo Ventura Santos...
00:52:00
SALZANO: Isso.
DENT: Poderia comentar um pouco sobre esse projeto, sobre esse... Eu sei que
literalmente não voltou para a aldeia né, mas voltou para os dados, as
amostras e para seguir nesse seguimento da comunidade Pimentel Barbosa. Poderia
comentar um pouco sobre esse projeto?
SALZANO: Isso foi uma iniciativa basicamente do Ricardo e do Carlos. E eu
comecei a entrar em contato com os trabalhos dele sobre genética médica bem no
início da formação de ambos e aí no momento que eles estavam, como se diz, a
fazer um trabalho mais interdisciplinar. Eles são um exemplo de trabalho interdisciplinar.
Eles me contactaram, então a iniciativa realmente foi deles, do Carlos e do
Ricardo. E aí então eles me mandavam os dados coletados por eles pra gente
fazer análise aqui e depois surgiu todo esse trabalho de análise conjunta.
DENT: Poderia comentar um pouco sobre a importância desse trabalho como um
estudo diacrônico, um estudo que abarca o tempo inicial, o trabalho de campo
dos anos 60 e um estudo de novo já no final da década de 80.
00:54:00
SALZANO: Pois é, esse não é o único, mas existem muito poucos grupos tribais
que tenham sido analisados de maneira tão continuada e isso é um aspecto
importantíssimo realmente porque os follow ups foram muito restritos ao longo
de toda essa época. Inclusive se dizia que não havia o follow up porque os
grupos tinham desaparecido.
Então o camarada faz um trabalho de campo num grupo tribal X e tenta voltar dez
anos depois e esse grupo já desapareceu, foi extinto, etc., que era mais comum
talvez naquela época do que agora. Sem dúvida era mais comum naquela época.
Então houve aquele processo de extinção de grupos tribais que fez com que
então esses estudos ao longo dos anos fossem muito restritos.
DENT: E tem algum outro grupo que o senhor estudou que tem um perfil semelhante,
um série de estudos e follow up, como nos Kayapó, por exemplo. Tem alguém que
fez uma atualização do trabalho dos senhores? Do senhor e do Neel e do grupo?
SALZANO: Não, não teve ainda. Esses outros trabalhos que têm sido feitos em
00:56:00Kayapós, por exemplo, têm sido muito mais específicos e pontuais,
principalmente com relação à antropologia social sem tentativa de interação
com a biologia.
DENT: E durante o trabalho de campo e no processo de preparar, de escolher um
grupo para estudar, o senhor teve interação com o Summer Institute of
Linguistics em algum momento?
SALZANO: Quem?
DENT: O Summer Institute of Linguistics seria, por exemplo, com Xavante a
Valerie Mitchell, a Ruth McLeod. Era um grupo missionário que se chamava...
Aqui normalmente se chamava Summer, Summer.
SALZANO: Ah, o Summer Institute.
DENT: Aham. Que era esse grupo de linguística.
SALZANO: Não, o Summer a gente teve muita boa interação com o Summer durante
toda aquela época lá.
DENT: Poderia comentar um pouco o que é que lembra, com quais pessoas, como era
a interação, se eles estavam nas aldeias? Qual era a textura dessa interação
com essas pessoas?
SALZANO: Não, sempre foi muito boa. Eles, lógico, eles tinham o que eu
considero limitação do ponto de vista religioso, mas eles desenvolveram um
trabalho muito bom de conhecimento das línguas indígenas. E eu estive
inclusive em contato com várias pessoas do Summer ao longo do tempo, nas
00:58:00aldeias também e sempre foi muito bom.
DENT: Bom, queria perguntar um pouco mais sobre como mudou a relação entre a
antropologia social e a antropologia biológica ao longo dos anos porque o
senhor sempre buscava ter uma interação, um trabalho conjunto, uma
interdisciplinaridade, mas eu acho que os campos se afastaram um pouco um do outro.
SALZANO: Isso.
DENT: E queria saber a perspectiva do senhor. Por quê? O que aconteceu? E qual
foi o resultado desse afastamento e se tem uma possibilidade de juntar de novo
ou não? Por quê? Qual seria a perspectiva do senhor?
SALZANO: É complicado porque... realmente o afastamento começou de maneira
mais pronunciada a partir da defesa dos interesses indígenas, a partir das
non-governmental organizations religiosas. E porque aí eles começaram a ter
uma visão muito restrita e, no meu ponto de vista, equivocada dos estudos
genéticos. Então com isso começou a haver esse afastamento que é realmente lamentável.
01:00:00
Então agora é o que eu chamo de "genéticofobia". Há um medo irracional por
parte de alguns, pelo menos um número grande de antropólogos sociais com
relação à genética. E toda essa questão da interrelação com problemas de
raças e essas coisas, racismo. Então qualquer estudo genético é considerado
racista, pelo menos por alguns, não todos, lógico.
Mas nós continuamos no sentido de que há necessidade de se investigar com
detalhes as influências culturais. E vários dos artigos que nós estamos
publicando agora consideram essa parte, sem dúvida.
DENT: Agora são poucas pessoas que fazem trabalho de campo da genética com
povos indígenas, eu acho...
SALZANO: Não, está proibido. É quase proibido. Não totalmente, mas pra
conseguir uma licença é muito complicado.
DENT: Então como estão conseguindo, ou como têm influenciado as
possibilidades de pesquisar na área, essa dificuldade de conseguir
01:02:00autorização por parte de todos os muitos órgãos do estado que estão sendo
parte do regulatório das pesquisas? Como têm influenciado a pesquisa que está
sendo realizado?
SALZANO: A gente tem principalmente se concentrado em amostras coletadas,
amostras históricas coletadas ao longo do tempo. E aí as inferências que
podem ser feitas são de maneira... são muito mais indiretas do que se a gente
pudesse fazer trabalhos específicos em grupos tribais relacionando uma coisa
com a outra.
Quase uma exceção à regra são os Aché que são trabalhados com o Kim Hill e
Magdalena Hurtado que têm essa visão ampla dessa necessidade dessas
interações. Então ainda estamos publicando algumas coisas juntos através de
01:04:00trabalhos de observações de campo que eles continuam fazendo entre os Aché
lá do Paraguai.
DENT: Aí como tem sido a relação para estudos de antropologia biológica com
a ABA ao longo do tempo, porque teve esse afastamento do campo mais biológico
do sociocultural. Ainda tem alguma interação? A ABA tem uma parte que funciona
que é mais voltado para questões biológicas? O senhor teve ainda
colaboração, estava ainda envolvido na ABA?
SALZANO: Pois é, o desenvolvimento da ABA teve muito que ver com o surgimento
dos programas de pós-graduação em antropologia que privilegiaram a
antropologia social ou cultural. Então, a direção de todas as investigações
que estão sendo apresentadas nos congressos da ABA são dessa natureza, com
pouca interação com a biologia, com a arqueologia e com a linguística. Há
essa tentativa da Federal do Pará de fazer um curso de pós-graduação
envolvendo as quatro áreas, mas não sei o sucesso que eles estão tendo.
01:06:00
DENT: É que foi fundado há pouco tempo esse programa.
SALZANO: Foi, foi. Cinco anos, sei lá. Nem sei se já tem algum graduado
pelo... Deve ter já.
DENT: Taí uma boa pergunta né. É...
SALZANO: Mas então o que houve foi essa separação que continua. E agora é
muito forte. A antropologia social é ABA, a Sociedade Brasileira de
Arqueologia, e Arqueologia Linguística a Sociedade Brasileira de Linguística.
Associação da Antropologia Biológica, é biológica. Então é uma situação
até certo ponto lamentável, mas também com a especialização dos trabalhos
é muito difícil fazer interações a não ser em casos mais específicos,
grupos específicos.
DENT: E o senhor ainda teve parte na ABA depois de ser parte do comitê
cientifico no início? Ainda teve mais interação, mais trabalho, ou já depois...
SALZANO: Pois é, aí durante o tempo que eu permaneci lá, eu participei de
diversos congressos e tal, mas depois com essa especialização da ABA para
antropologia social então as discussões lá tinham pouco a ver com o meu
interesse geral. Então eu paulatinamente fui me afastando e há um mês atrás
01:08:00eu pedi demissão do quadro de associados da ABA... [Risos]
DENT: [Risos]
SALZANO: [Risos] ... depois de não sei quantos anos.
DENT: [Risos] Isso foi porque já não tem tempo disponível?
SALZANO: Questão do custo-benefício.
DENT: Sim. O senhor tem algum comentário mais relacionado com essa questão de
interdisciplinaridade, das colaborações com antropólogos sociais, linguistas,
arqueólogos? Tem alguma coisa mais que parece que eu não perguntei, alguma
coisa relevante que quer comentar?
SALZANO: Não, eu acho que é isso. Quer dizer, tem que haver essa interação,
mas ela é muito difícil, então a não ser que haja montagens de projetos
específicos relacionado com um problema determinado envolvendo pessoas que já
estejam abertas ao diálogo, vai ser muito difícil. Mas não é impossível.
DENT: E ainda tem bastantes colaborações internacionais que tem esse aspecto
interdisciplinar também, com México, com Argentina, com Paraguai...
SALZANO: Exatamente.
DENT: Com Estados Unidos, com talvez não sei se vai desenvolver alguma coisa
com Tad Schurr, mas esses que vão trabalhando mais com questões como o
Genográfico, esses tipos de projetos né.
SALZANO: É. Genográfico é mais com o Fabrício lá de Minas Gerais que ele é
o responsável brasileiro. A fase inicial ele entrou em contato comigo e tal,
01:10:00mas teve dificuldades imensas para conseguir o material aqui dos grupos
brasileiros. Conseguiu muito antes de grupos bolivianos, peruanos...
DENT: Equatorianos também. [risos]
SALZANO: Pois é. Então é o tal problema da dificuldade. Mas a gente está
sempre aberto.
DENT: Agora eu encontrei algumas coisas no Arquivo que eu queria perguntar para
o senhor. Estava no Arquivo Nacional em Brasília e teve uma antropóloga que
foi demitida da FUNAI durante a ditadura por uma questão, o supervisor dela que
era parte da... Era militar porque naquela época a FUNAI tinha muitos militares
que estavam atuando.
SALZANO: Isso.
DENT: Tinha perguntado para ela se seria possível fazer um teste genético para
saber quem é e quem não é indígena.
SALZANO: É.
DENT: E ela foi demitida. Depois ela respondeu por escrito depois e citou o
senhor e depois ela foi demitida por falta de respeito para o supervisor, alguma
coisa assim.
SALZANO: Ah, é?
DENT: Foi. E eu queria perguntar para o senhor: foi uma iniciativa da ditadura
de fazer um teste assim? O que era isso? Era uma coisa que se conversava naquela época?
SALZANO: Não, foi um coronel que foi nomeado presidente da FUNAI que então
teve essa ideia de procurar uma... "legitimizar", digamos, que parte do ponto de
01:12:00vista biológico se quem dizia que era indígena era realmente indígena.
E aí várias pessoas, provavelmente essa antropóloga também, foram
contrárias a essa ideia. E eu me manifestei mais uma vez porque o meu conceito
do que é indígena, foi baseado no conceito de um antropólogo brasileiro que
é o Darcy Ribeiro -- e foi uma das primeiras leituras minhas também -- de que
índio é aquele que se considera índio e que mantém lealdades com uma
comunidade desse tipo. E foi isso que eu salientei na ocasião em que houve essa polêmica.
DENT: E onde saiu essa conversa? Essa discussão saiu na impressa, foi
solicitado uma opinião do senhor? Como aconteceu essa discussão?
SALZANO: Na verdade não houve muita discussão e na época não havia muita
abertura para diálogos. Ele estabeleceu aquilo e ponto final. Houve algumas
discussões, mas na imprensa. Não houve nada... Bom, deve ter havido uns
trabalhos acadêmicos também a respeito, mas não me lembro agora no momento de
01:14:00nenhum deles.
Mas isso reflete até hoje na questão das cotas, se é válido ou não é
válido, estabelecer políticas que desse ponto são afirmativas baseadas na
etnia. Porque uma coisa é a tua filiação num grupo, outra coisa é a tua
aptidão pessoal. Então para qualquer tipo de atividade está lá na
Declaração Universal dos Direitos Humanos, o que deve influir não é
associação, qualquer afiliação a qualquer grupo, entidade, ou filosofia, mas
a aptidão pessoal. E essa é a minha opinião também.
DENT: Mas no momento de esse coronel propor um teste genético para o índio,
para identificar quem é índio, o senhor se manifestou como? Escreveu uma
carta, um artigo...?
SALZANO: Não...
DENT: Lembra como...?
SALZANO: Eu fui consultado na verdade mais de uma vez por diferentes pessoas.
Agora faz muito tempo para eu saber como houve, como foi a coisa específica,
mas eu fui consultado por pessoas, entidades. Entidades eu não sei, mas
pessoas, e por órgãos da imprensa também para me manifestar.
01:16:00
DENT: E foi consultado de novo para as questões como das cotas que foram
aprovadas faz pouco tempo, esse período mais recente? Foi solicitado
comentário sobre a questão genética, de fazer um teste de genética agora ou não?
SALZANO: Sim, sim, lógico.
DENT: [Risos]
SALZANO: [Risos] Tem havido muita polêmica. Bom, tu já viste esse livro do
pessoal da antropologia daqui, do Steil.
DENT: Não, eu não vi esse.
SALZANO: Ah, não tinha visto esse?
DENT: Cotas raciais na universidade. É o Carlos Alberto Steil.
SALZANO: E eles pedem a minha opinião. Um dos capítulos eu que escrevi. A
Cátira escreveu também, o Sérgio Pena, o Ricardo.
DENT: Uhum. É bem interessante.
SALZANO: Saiu no Horizontes Antropológicos e depois agora eles fizeram um livrinho.
DENT: Ah, sim.
SALZANO: Outra interação que eu tive grande, não muito grande, mas razoável
foi com o Peter Fry que está aí. Trabalhou inicialmente na UNICAMP e depois
foi lá pro Rio de Janeiro.
DENT: E agora o senhor sempre tem estado vinculado muito com as conversas, os
01:18:00diálogos sobre questão éticas da pesquisa. Sempre escreveu porque tem muitos
artigos, ou livros sobre a questão dos Yanomami, tem muitas coisas -- mas eu
queria saber um pouco se poderia descrever a sua atuação como... Não estou
posando [apresentando] bem a pergunta... Mas se poderia caracterizar o papel
dessa questão dentro da obra pessoal. Qual seria o papel que tem e qual seriam
os momentos mais importantes de atuação na área ética que o senhor teve até agora?
SALZANO: Então, na verdade, sempre que houve essa discussão. Eu sempre estive
envolvido, interessado na questão dos direitos individuais. E no momento em que
há uma aglutinação dessas ideias, e surge a bioética como uma disciplina
independente, eu tenho sido convidado a me manifestar em diferentes ocasiões.
01:20:00
Então uma delas foi com relação à parte médica. Foi um capítulo que eu
escrevi com a Dorothy Wertz e também a UNESCO. Já participei de mais de uma
reunião da UNESCO sobre esses aspectos. Um deles eu tenho, tenho pelo menos
duas publicações sobre essa parte das relações de bioética com grupos
tribais. Então participei de uma reunião formal da UNESCO lá no Canadá, em Montreal.
Então é um interesse continuado. Está para ser publicado uma enciclopédia
das Social Sciences, das Ciências Sociais, vai ser publicado lá no Reino
Unido, na Inglaterra, um capítulo sobre microevolução, na qual eu abordo
também essa questão da... A minha posição foi considerada muito radical pela
01:22:00editora de área da enciclopédia que pediu para eu diminuir o tom das minhas críticas.
DENT: [Risos] Quais eram as críticas que estavam assustando?
SALZANO: Essas que eu estou falando de "genéticofobia", essas coisas e tudo.
DENT: Uhum.
SALZANO: E eu digo que são dois direitos que são negligenciados, dois direitos
éticos que são negligenciados atualmente: um é o direito de receber todos os
benefícios de um desenvolvimento cientifico-tecnológico. Então há uma
distribuição que é -- como é que eu vou dar uma definição -- é uma
aquisição desigual do fornecimento dessas informações para as sociedades e
grupos humanos dentro de uma sociedade que é injusta. Em última análise é
01:24:00injustiça. Então em certos grupos em países do terceiro mundo, e até muito
mais do quarto e quinto mundo, eles não têm acesso à tecnologia que eles
deviam ter e que países de primeiro mundo têm. E, além disso, dentro de um
país como o Brasil, por exemplo, o acesso ao conhecimento médico.
[Barulho de alguém bate à porta. Lúcia oferece café]: Com licença, o senhor
quer café? Daqui a pouco?
SALZANO: Deixa...
Lúcia: Deixo lá e aí depois o senhor pega.
SALZANO: E então o acesso aos progressos da medicina é muito desigual numa
vila operária aí e num bairro burguês, por exemplo. Então esse é o primeiro
dos direitos negligenciados. E o segundo direito negligenciado é o direito de
conhecer a história do seu povo.
Então no momento que tu negas esse direito, seja através de queimas de livros,
como ocorreu na Alemanha nazista, seja através de proibir estudos de genética
que vão fornecer essa história numa época ainda mais longínqua, tu estás
impedindo essas pessoas de receber um direito fundamental. Isso foi o que eu
01:26:00disse nesse capítulo e que ela achou muito forte.
DENT: [Risos]
SALZANO: Em relação à queima de livro nazista com a proibição de estudos
biológicos genéticos em grupos tribais.
DENT: Uhum. Então se o senhor ia articular os benefícios dos estudos
genéticos que poderiam ser realizados sobre a diversidade genética que dá
informação sobre povoamento das Américas, como comentaria, como explicaria os
benefícios para o povo?
SALZANO: Os benefícios são tanto do ponto de vista acadêmico, como aplicado.
Acadêmico é bom, eu quero saber a história do meu povo, então isso aí tem
desenvolvido até, tem levado até companhias privadas nos Estados Unidos.
Pessoa quer saber de onde veio o seu antepassado. Então isso é uma coisa. É
um problema mais acadêmico de identidade nacional, ou étnica, ou populacional.
E o outro é a questão da suscetibilidade às doenças. Sem o conhecimento da
genética é impossível montar um sistema de medicina personalizada. Então no
01:28:00momento em que se proíbe a investigação de determinados grupos, nós estamos
prejudicando-os de maneira bem específica. Porque não há dúvida que no
futuro as prescrições médicas não vão levar em conta só o peso, se a
pessoa é adulta ou criança, mas uma série de outras coisas relacionadas com genoma.
DENT: E eu fiz algumas entrevistas com membros da CONEP sobre o sistema como
funciona e sempre perguntei sobre os estudos genéticos com povos indígenas
porque aí entra duas vezes por uma lista de áreas temáticas especiais, que é
a genética e também povos indígenas.
SALZANO: Isso.
DENT: E eu estava perguntando para eles como funciona o sistema. Alguns
comentaram sobre os problemas que Fabrício dos Santos teve com o projeto
Genográfico que demorou tanto e etc. Eles comentaram que já estão melhorando,
modificando o processo de...
SALZANO: //Avaliação//
DENT: ...//Avaliação// para, por exemplo, se eu passo uma vez pela avaliação
e depois quando está submetido de novo, se os revisores encontram coisas novas
que eles não comentaram na primeira revisão, eles já não podem comentar
porque já foi revisado e já foi enviado uma lista de coisas que precisavam ser
01:30:00qualificadas ou mudadas.
SALZANO: Isso.
DENT: E alguns comentaram... Bom, é... um membro da CONEP, que está saindo já
agora da CONEP, comentou que isso já não pode acontecer mais, que é uma coisa
volta sempre com novas perguntas que não estavam na primeira revisão.
SALZANO: Lógico.
DENT: Eu queria saber um pouco do senhor, não sei quantos protocolos o grupo
manda para a CONEP, ou como funciona exatamente o processo agora, mas se tem
percebido desde 1996, quando iniciaram esse processo de revisão ética da
CONEP, como tem mudado o sistema. Se tem mudado, se está funcionado melhor,
pior [risos] se tem alguma perspectiva?
SALZANO: Eu acho que mudou muito pouco.
DENT: Mudou muito pouco?
SALZANO: É. Eu tenho muito contato com o Goldim, que é o membro, que é o
"papa" da bioética aqui no Rio Grande do Sul e a gente tem discutido bastante
isso. Bastante. Bah, mais ou menos, mas a gente tem discutido. E eu acho que tem
havido pouco progresso.
DENT: E quais são os últimos projetos que o laboratório mandou para a CONEP,
como foi o processo nesse...?
SALZANO: Pois é, como nós não estamos fazendo trabalho de campo, eu não
tenho mandado mais nada.
DENT: Um-hm.
01:32:00
SALZANO: Então na verdade eu não sei. Até agora é todo um sistema também de
aprovação de projetos através de uma rede aí da internet. O que eu sei é
que é muita burocracia.
DENT: Nossa. [Risos]
SALZANO: [Risos]
DENT: Sabe que eu estava trabalhando com os processos na FUNAI de pesquisadores
que queriam fazer trabalhos de campo assim desde a década de 70 até agora. Mas
os processos do senhor estão em outro prédio que está fechado. Então não
tive acesso para esses ainda.
SALZANO: É. Tu falaste.
DENT: Mas estou vendo assim como crescem os processos com toda a documentação
que precisa mandar. Isso só para a FUNAI que também tem que coordenar com
CNPq, com CONEP. Então é tudo um sistema burocrático enorme. [Risos]
SALZANO: É complicado.
DENT: É complicado mesmo.
SALZANO: Mas não é só com o indígena. É em geral.
DENT: Sim. Aí, saindo um pouco dessa questão da coisa prática de fazer esse
burocracia de revisão ética, quais seriam as coisas, as práticas que mudaram
desde os primeiros trabalhos de campo até agora, a pesquisa que o laboratório
faz? Tem mudanças assim nas visões dos pesquisadores enquanto as questões de
ética de algum modo?
SALZANO: Não, houve uma maior conscientização por parte dos pesquisadores da
necessidade de retorno da informação para os grupos que estão sendo
01:34:00estudados, que eu acho um aspecto saudável. Isso não ocorria antes. Todas as
intervenções que a gente fazia no campo a gente delegava para o SPI ou a FUNAI
tomarem as providências que seriam cabíveis, inclusive de informação dos
grupos locais. Mas nunca fizemos follow up, um seguimento dessas possibilidades.
DENT: E se o senhor tivesse a possibilidade agora de voltar para... Bom, não
voltar assim literalmente porque talvez não dá para viajar até Mato Grosso,
mas, por exemplo, de mandar uma mensagem para a comunidade da importância da
pesquisa que foi realizada, como explicaria a pesquisa agora para essas
comunidades que foram estudadas nos anos 60 e 70. Isso foi uma coisa que deu
muito material importante para a ciência, e como explicaria para a comunidade
agora o que foi feito?
SALZANO: É complicado. Justamente por isso que não há... Esses termos de
consentimento informado é muito relativo para grupos sem escrita. O que a gente
01:36:00pode dar é uma informação muito geral, que é o que a gente sempre fez, mas
entrar em específico não dá. Como é que vai explicar para um indígena de
uma tribo qualquer se a importância de que a entrada no continente americano
tenha sido uma leva só ou em três levas? Entendeu?
DENT: Uhum.
SALZANO: Isso aí é um problema que requer uma série de formação cultural
que eles não têm. Então não adianta, não vai poder explicar isso para eles.
DENT: Mas ainda acha importante ter a possibilidade de conhecer essa história?
Porque aí tem uma história que é mais geral assim para o povoamento de todas
as Américas.
SALZANO: Não, isso é muito importante. Sem dúvida. Porque está toda essa
história dos mitos, então tem que ser consideradas. Então vamos proibir saber
história indígena de um grupo, a história biológica de um grupo só porque o
mito da criação desse grupo já foi delineado? Não. É a mesma coisa que
aqui. Há uma... A história da minha criação é uma história que difere se
eu sou da religião católica, da religião budista, sei lá, de qualquer outra
01:38:00religião. Então a história biológica em si vai diferir inevitavelmente
desses mitos. Então a pessoa bem informada tem que separar uma coisa, o que é
mito... Pode ser muito louvável conhecer esses mitos, mas separar o que é mito
e o que é realidade.
DENT: O Fabrício dos Santos explicou para mim a maneira que eles explicaram
quando estavam descrevendo porque fazer este estudo do Genográfico. E eles
levaram um mapa da Américas, um mapa do mundo, do globo, grande, muito grande.
Aí eles colocaram umas pessoas no mapa e fizeram eles fazer a viagem caminhando
em cima do mapa. Achei muito legal essa explicação.
SALZANO: Esse é um recurso didático apropriado.
DENT: Sim, ele até que falou que pegaram as crianças mais pequenas das
comunidades, colocaram eles no mapa e eles explicando assim: durante milhares de
anos... [Risos] Achei muito legal como uma maneira de explicar a importância
que eles entendam desses estudos.
SALZANO: Não, acho que é uma atividade louvável.
DENT: [Risos] É bem interessante. Eu não sei. Algum outro comentário que o
senhor quer fazer com referência a isso?
SALZANO: Não, acho bom. Tu vai estar ainda por aqui. Qualquer outra coisa,
01:40:00conversa comigo, a gente conversa de novo.
DENT: Tá. Ótimo. Muito obrigada então professor. [Risos] De novo, muito obrigada.
SALZANO: Ok. Tá.