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Keywords: Afeto; Genética Médica; Redes científicas e circulação; colaboração e acordos; coleta de dados; doenças genéticas; exames dos sujeitos; prática; relação afetiva com sujeitos humanos; rotina de trablaho; sujeito humano; Ética; ética informal
Subjects: Afeto; Genética Médica; Prática; Redes científicas e circulação; Sujeito Humano; Ética
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DENT: Agora eu só vou verificar se está funcionando-- sim, está funcionando.
Hoje estamos 18 de Julho, já-- ou 19?SALZANO: Hoje é 19.
DENT: Está passando muito rápido o tempo, né? É a quarta entrevista com o
Doutor Salzano. Estamos na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Então tá, perfeito. Como na última entrevista que não foi gravada corretamente, conversávamos sobre a relação entre a antropologia e a genética das populações, não? Agora, gostaria falar um pouco sobre a relação entre a genética das populações e a genética médica. E, eu sei que você está também muito involucrado [envolvido], trabalha muito com os temas da genética médica. Então queria saber um pouco como é que você entende a relação entre os dois campos. Talvez nem sequer se pode dividir. Mas entre genética das populações e genética médica...SALZANO: Pois é-- " Na verdade, o meu principal interesse é sempre a parte da
variação normal. Mas, então, foram circunstâncias diversas que fizeram com 00:02:00que eu também me ocupasse da parte da variação patológica. E, mesmo porque no início, quando eu comecei a trabalhar com genética humana aqui, não havia nem disciplina de genética médica nas escolas de medicina. Só posteriormente, devido até parte da nossa influência, do departamento, é que elas surgiram. Então, para se considerar a genética das populações, ela basicamente está relacionada com a evolução, no caso da nossa espécie com a evolução humana. E não há, na verdade, nenhum aspecto que esteja vinculado à nossa maneira de vida, história de vida, que não seja importante para a evolução. Então, dentro desse contexto, a genética médica também está envolvida e também, em muitos casos, a distinção entre o que é normal e o que é patológico também é tênue. Um exemplo são as doenças do comportamento e outras que são de origem multifatorial, muitos fatores. Então, eu acho que deve haver uma 00:04:00interação grande entre as duas coisas. E é isso que eu estou fazendo.DENT: Claro... e, podia comentar um pouco como você falou que ao início quando
fundaram o departamento não existia a genética médica nas faculdades de medicina. Como era que se fundou essa parte aqui e como desenvolveu o campo no Brasil?SALZANO: Pois é. Então, naquela época era pouco realmente em todo mundo,
poucas as faculdades de medicina que tinham genética. Isso não era verdade lá em Michigan, em Michigan já havia um curso que era dado pelo professor Neel, para os que estavam iniciando, inclusive, na faculdade de medicina. E como eu falei, então, quando eu cheguei aqui, em '57, eu fiz uma série de contatos, correspondência com as cátedras das faculdades de medicina, me propondo a um trabalho de colaboração. Então, isso recebeu uma resposta especialmente de um professor de neurologia e depois fizemos um trabalho, pouco tempo depois, em 00:06:00colaboração com um outro professor da radiologia, e assim por diante, foram surgindo outras oportunidades de interação. Mas o problema continuava, era aquele, no Brasil, até pouco tempo - mas acho que ainda continua - o currículo médico, ele é muito estritamente regulado, e, portanto, qualquer criação de nova disciplina é complicada. Mas então, nós propusemos, ainda quando estava sendo finalizado o edifício do Hospital de Clínicas, a introdução de uma disciplina de genética no currículo. E isso sofreu certa resistência, mas no final foi criada uma disciplina na parte do ciclo básico, na parte básica do curso de medicina. E isso foi ministrado inicialmente Dr. Israel Roisenberg, que eu já te falei dele, o meu primeiro orientado a concluir o doutorado, e posteriormente ingressou no departamento o Dr. Roberto Giugliani, que então, 00:08:00como ele estava vinculado também ao Hospital de Clínicas teve um trabalho facilitado de montar um serviço no hospital, que agora é modelo para todo o Brasil, e fontes de referência para diferentes tipos de patologia, especialmente os erros inatos de metabolismo. Então, isso foi muito bom. Atualmente, além do Dr. Roberto Giugliani, tem outros, pelo menos três outros membros do nosso departamento que fazem parte simultaneamente do Hospital de Clínicas e do departamento de genética.DENT: Lembra quais são?
SALZANO: Então, a Ida Schwartz, a Patrícia Prolla e a Drª. Lavínia
Schüler-Faccini. Nome complicado.DENT: E os primeiros dois médicos lá, o professor de neurologia e o outro de
radiologia? Lembra como eram seus nomes? Ou está em alguma publicação?SALZANO: Está na publicação. O neurologista, no fim, não tivemos nenhum
contato depois continuado.DENT: Ah, sim.
SALZANO: Dei algumas aulas lá na disciplina, mas foi só. Mas o cardiologista,
00:10:00o Dr. Darcy [de Oliveira] Ilha, eu tenho uma publicação com ele lá naquela época, sobre uma doença hereditária.DENT: E você estava muito ativo dentro das negociações para estabelecer essa
genética, na faculdade de medicina, ou foram outras pessoas que trabalhavam no tema?SALZANO: Eu tive uma certa influência, mas não fui o líder desse trabalho. O
Dr. Roisenberg, sem dúvida, talvez tenha sido o mais, e o Dr. Roberto Giugliani.DENT: Eles estavam interando?
SALZANO: Mais vinculados a essa área mesmo...
DENT: E no seu currículo, está na parte de serviço para a comunidade, que
entre 1950 e 1980, você estava coordenando um servicio [serviço] gratuito de aconselhamento genético. Podia comentar um pouco como iniciou esse programa e como era?SALZANO: É a mesma coisa, quer dizer, quando voltei, não havia praticamente
ninguém trabalhando com genética medica, e havia essa necessidade de pessoas cujos parentes tinham algum problema genético eles procurassem informação 00:12:00sobre o modo de herança, essas coisas. Então, eu me dispus a ajudar essas pessoas. E, então, periodicamente, médicos da comunidade, ou da própria universidade nos mandavam casos para considerar. À medida que, por exemplo, a parte do laboratório de genética humana ficava mais conhecido também, havia uma demanda espontânea. Então isso, foi se desenvolvendo ao longo do tempo. Na verdade, tanto eu como o Dr. Newton Freire-Maia, que já te falei também, embora, não fossemos médicos, montamos esse serviço porque era necessário. Uma necessidade da comunidade. E, então, depois de certo tempo, essa parte foi transferida para um outro membro do departamento que era meu ex-aluno do doutorado, Dr. Fernando José da Rocha. Ele, então, procurou se reunir com outras pessoas da parte médica e psicológica também, e então isso foi funcionar numa sistemática um pouco mais complicada do que só uma informação 00:14:00pessoal para as pessoas, através da informação que eles obtivessem no serviço médico. E com, então, a volta do Roberto Giugliani do doutorado dele lá em Ribeirão Preto, e a vinculação dele ao Hospital de Clínicas, então esse serviço passou praticamente todo ele lá para o Hospital de Clínicas.DENT: E isso foi em 1980, ou aconteceu antes?
SALZANO: Por aí. Nós paramos de desenvolver - pelo menos sistematicamente -
essa atividade porque ela estava sendo muito bem desenvolvida lá, inclusive com todo o apoio médico. Atualmente é indispensável, tanto um apoio nas unidades que fazem aconselhamento genético, um apoio forte na parte de diagnóstico... e psicológico com relação aos pacientes e suas famílias.DENT: E se eu quiser falar... Agora estou tentando integrar as aulas de
00:16:00português e fico mais confundida [confusa] acho.SALZANO: Tudo bem.
DENT: O Dr. de la Rocha ou algumas outras pessoas ainda estão para me contar
mais um pouco dessa parte...SALZANO: O Fernando se aposentou. Realmente teria que fazer contato com o
pessoal de serviço de genética médica, lá no hospital. Com o Dr. Roberto Giugliani, que é o chefe. E quem faz mais a ponto entre o hospital e aqui é a doutora Lavínia, que poderia ser contatada através de telefone ou e-mail. Deve ter visto ela no vídeo [do Museu da Genética da UFRGS].DENT: Sim. Vi. Ela está lá falando muito bem sobre as responsabilidades, acho
que fala muito sobre a responsabilidade social da genética, na sociedade.SALZANO: Isso. Um dos produtores do vídeo era o filho dela. Filho político,
digamos, do atual marido dela.DENT: Ah sim... muito bem. O início do programa de aconselhamento, como era o
processo? Chegou um paciente do hospital, porque um médico...SALZANO: Não necessariamente do hospital. Podia ser de uma clínica qualquer particular.
DENT: Mas um médico falou para um paciente que vaya [fosse] para o...
00:18:00SALZANO: Talvez se tivesse um problema genético, então entrasse em contato conosco.
DENT: E quem recebia... Essas eram chamadas, ou pessoas que chegavam? Como era o
processo para uma pessoa que chegou... Ao inicio como "manejavam" [lidavam com] este caso?SALZANO: Ah, era completamente artesanal.
DENT: [risos]
SALZANO: Não havia nenhum serviço formal. Entrava em contato direto comigo. E,
quando necessário, eu obtinha a informação diagnóstica, se ela já não tivesse, e fazia uma sessão de aconselhamento explicando os riscos, tanto com relação ao eventual aparecimento de sintomas, como a probabilidade de novos filhos serem afetados... E eventualmente alguns deles voltavam. Mas não era regra, quer dizer, eles ficavam com aquela informação. E agora tem todo um processo de verificação psicológica, quanto ao diagnóstico e seguimento, essas coisas que não dava para fazer na época.DENT: Não claro... E como era a experiência interpersonal [interpessoal]? Como
foi que você desenvolveu essas habilidades? Porque é uma coisa muito delicada, não? Como foi o processo para você aprender a fazer isso sozinho? 00:20:00SALZANO: Não foi completamente sozinho, porque na universidade de Michigan
havia um serviço formal de aconselhamento genético. Foi um dos primeiros departamentos a fundarem um serviço de aconselhamento genético lá nos Estados Unidos. Então eu assistia várias entrevistas na época. Todas as semanas, num dia determinado, o professor Neel reunia o pessoal do departamento para discutir casos mais especiais que fossem aparecendo. Era um serviço bem especializado. Tinha um prédio só para isso- Genetics Clinic- que tinha, que dava um apoio bem firme nessa parte.DENT: Então aprendeu muito lá e depois voltou para fazer o que podia com os
recursos limitados... Tempo e tudo. Quais eram as doenças mais comuns que sabiam identificar naquela época?SALZANO: Então iniciei, como falei antes, aconselhamento genético em
hemofilia, que era uma das doenças que chamava mais atenção. Mas com 00:22:00relação às outras eram muito variadas. Em alguns casos de malformações congênitas, que têm geralmente uma etiologia complexa. A gente na época tinha que se basear só em dados empíricos, da experiência anterior de outros centros e o que estava registrado na literatura. E havia outros casos também, a parte de a doença hemolítica do recém nascido, que é devido ao fator RH. Como eu tinha montado uma pesquisa aqui sobre grupo sanguíneo, variação populacional de grupo sanguíneo, de vez em quando vinha também casos desse para se verificar se o pai da criança possuía os dois genes para o fator dominante, que então ia causar a doença, que devido a incompatibilidade com a mãe. Então o pai é RH positivo, chamava, e a mãe Rh negativo. Se ele era homozigoto para o fator RH positivo, toda criança que nascesse seria heterozigoto, poderia ter problema na gestação. Se ele fosse heterozigoto, era 00:24:00só 50% de probabilidade de caso de incompatibilidade entre mãe e filho.DENT: E quanto do seu tempo tomou esse programa? Foi uma coisa de muitas horas,
ou foi uma coisa que às vezes teve esse encontro?SALZANO: É, não era muito sistemático. Em geral, era umas duas ou três horas
por semana, por aí.DENT: E os estudantes de pós-graduação também estavam ligando com esse
programa, trabalhando conjunto?SALZANO: Bom, naquele tempo ainda estava começando...
DENT: Ainda não...
SALZANO: A institucionalização da pós-graduação estava iniciando naquela época.
DENT: Que o primeiro se formou em... '70?
SALZANO: '80... não sei.
DENT: Bem, eu vou verificar... Então você estava colaborando com outro
professor do departamento? Ou estava fazendo só você?SALZANO: Não, praticamente só eu.
DENT: Imagino que naquela época não tiveram regulação... Ou?
SALZANO: Não, não havia. Nenhum tipo de regulamento...qualquer outro
00:26:00documento, oficial que indicasse que deveria ser feito ou não. Até agora não há uma regulamentação desse serviço, dessas áreas. Mas atualmente, lógico, tem uma rede muito grande de centros de aconselhamento genético em todo Brasil.DENT: E existem outros centros além de Hospital das Clínicas aqui em Porto Alegre?
SALZANO: Aqui realmente não... Deixa eu ver... Na PUC, na Pontifícia
Universidade Católica, existem grupos interessados em genética, alguns que saíram daqui foram formados por pessoas, inclusive por mim. Mas não há um serviço específico de aconselhamento genético. Alguns tipos de doença talvez recebam... em alguns serviços especializados talvez eles forneçam esse tipo de informação, mas não é nada sistematizado, não.DENT: E uma vez que você tinha revisado um caso especifico, como procedia para
00:28:00remitir essa informação para alguém? Como era o processo? Falava diretamente...?SALZANO: Todos recebiam laudo por escrito. Que até hoje tem aí, em nossos
arquivos. Até, de vez em quando, alguém lá daquela época vem pedir informação sobre o que tinha acontecido. E a gente procura no arquivo e eventualmente pode fornecer, sim.DENT: E como lidava com a parte emocional desse trabalho? Foi uma coisa que...?
SALZANO: Mais informal realmente. Em geral, tenho certa empatia por essas
pessoas, e procurava, na medida do possível, evitar qualquer dano de natureza psicológica.DENT: E para você foi um cargo pesado ter que fazer esse...?
SALZANO: Não. Fazia porque eu queria.
DENT: Estabelecia algum relacionamento com alguns dos pacientes ou foi uma coisa
que realmente foi limitado da experiência de conversar uma vez, de explicar e depois eles saíam pra falar com o médico, com outra pessoa...SALZANO: Sim, realmente não houve seguimento. Algumas das pessoas que receberam
00:30:00esse aconselhamento genético, eventualmente, em época posterior, entraram em contato comigo. Tem até um caso interessante de um professor de física aqui da universidade que veio me procurar porque ele e a esposa estavam preocupados com risco do nascimento de uma criança com problemas. Não me lembro bem por quê, se era alguma questão da gestação dela, acho que foi isso. E eu forneci o risco, que era pequeno, então a pessoa não precisava interromper a gestação por causa daquele evento. E anos depois essa criança que nasceu e era normal foi minha orientada de mestrado.DENT: [risos]
SALZANO: ..."Ah você se lembra daquela vez que a gente foi..."
DENT: Interessante...
SALZANO: Pois é... é como são as coisas.
DENT: Que Porto Alegre não é uma cidade tão grande também.
SALZANO: Especialmente antes. E a comunidade acadêmica é ainda menor...
DENT: Claro, claro. Bem interessante. Então, também foi parte desse programa
00:32:00os testes de paternidade.... Ou foi outro programa que você fez?SALZANO: É, esta também começou de maneira informal. Porque nós tínhamos
montado uma série de marcadores genéticos para estudos da variação normal. Estudos acadêmicos. E havia essa demanda por esse tipo de exame. Não havia nenhum tipo de serviço especializado em Porto Alegre. Então, começamos a receber solicitações do poder judiciário, dos juízes daqui para realizar esses testes. Eu montei um conjunto de testes que podia fornecer esse tipo de probabilidade de que o acusado era mesmo ou não o pai da criança. E com isso, essa informação de que a gente estava fazendo esse tipo de teste, sem cobrar, a não ser a parte de comprando os reagentes que a gente utilizava... então começou a aumentar a demanda. E no final era uma avalanche a quantidade que 00:34:00casos que a gente tinha que realizar.Mais ou menos um ou dois anos antes que a gente interrompesse esse serviço
surgiram os testes baseados diretamente no material genético. Nós fazíamos testes com marcadores proteicos, que dava uma probabilidade mais especifica, muito mais segura do que os testes que nós fazíamos. E depois começaram a surgir também serviços privados e na própria universidade também surgiu pessoas interessadas em fazer esses testes. Então, nós desativamos o serviço.DENT: E geralmente eram casos legais?
SALZANO: Sim, era praticamente ao redor de 90% pelo menos dos casos eram da justiça.
DENT: E era para estabelecer o pai? Para reclamar ou para ter o apoio para criança?
SALZANO: Sim, geralmente a mãe entrava na justiça para reconhecimento da
paternidade. Para que então o possível pai pagasse uma manutenção dela até 00:36:00a maioridade. Muitos casos também foram questão de herança. Então pessoas que não tinham sido reconhecidas. E que eventualmente, quando possível, o pai morria, eles acionavam a justiça para reconhecer e com isso receber parte da herança.DENT: E o que era o que gostou alguma parte de fazer esses dois programas que
estava fora de seu interesse principal?SALZANO: Eu tinha como principal ideia era que a gente tinha que fornecer algum
tipo de retorno para a sociedade. Então, na medida do possível, a gente procurou fazer isso, o retorno da comunidade do que a gente conhecia, do que a gente era especialista ou não, que tinha algum conhecimento. E serviu também para a parte acadêmica. No fim eu publiquei um livro sobre isso - A genética e a Lei. Era baseado na nossa seria experiência com o serviço, e também uma 00:38:00avaliação das relações entre a genética e a lei. Então não só a determinação da paternidade foi apresentada nisso, como questões de problemas de identificação forense, casos de crimes, incesto e outras uniões consanguíneas. Nesse caso teve até um orientado meu que fez doutorado sobre essa parte de incesto. Direitos e deveres, comportamento antissocial, mutagênese, essa parte de monitoramento do meio ambiente, a manipulação do material genético, a eugenia, e então a visão geral sobre a sociedade humana e as mudanças que ocorriam ao longo dos anos com a legislação. O caso do aconselhamento genético também a gente publicou alguns artigos sobre a nossa experiência geral.DENT: Bem interessante essa parte também...
SALZANO: Sem dúvida.
DENT: E foi também uma maneira de estar em contato com os assuntos sociais
00:40:00relacionados com a genética que acho que sempre...SALZANO: Isso, é sempre um dos meus interesses importantes.
DENT: É. E publica muito você sobre os temas da sociedade com as ciências,
não? Então, cabe bem dentro do...SALZANO: De meus interesses sociais.
DENT: É. Bem interessante... Perfeito. Para as comunidades, quando você saiu
de trabalho de campo encontraram casos de doenças genéticas que precisavam ser aconselhados?SALZANO: É, poucos. Porque em geral essas doenças genéticas são doenças
degenerativas, e essas doenças geralmente, a pessoa morre geralmente em idade mais ou menos precoce. Então elas não ocorrem com muita frequência nessas comunidades tribais. Agora sempre que havia um caso mais complicado médico, a gente solicitava para a FUNAI para que essa pessoa fosse transladada para um centro mais desenvolvido para fazer os exames e o eventual tratamento.DENT: E lembra de algum caso especifico onde precisava esse tipo de intervenção.
00:42:00SALZANO: Não, não foram muito numerosas, mas foram variadas, não? Não me
recordo de nenhum caso específico a respeito.DENT: E agora como falamos um pouco do regulamento do Brasil referente às
provas genéticas, mas você falou que para [o] aconselhamento não existe realmente um regulamento forte agora que ...SALZANO: É, que eu conheça não. Talvez tenha alguma coisa do conselho federal
de medicina. Mas, em geral todas essas questões de genética estão reguladas por uma resolução desse conselho federal de medicina, e há uma comissão especial para questões relacionadas com pesquisa em seres humanos que tem então alguns regulamentos a respeito, mas não creio que haja... mas também publiquei, publico bastante...DENT: [risos]
SALZANO: ...também publiquei um capítulo num livro de dois pesquisadores
norte-americanos sobre tudo isso ai. Espera um momentinho. É este aqui, oh... 00:44:00DENT: Ethics and Human Genetics. Wertz and Fletcher.
SALZANO: Foi desenvolvido por esses dois pesquisadores norte-americanos e então
eles, cada capítulo, se relacionava com uma situação em diferentes países do mundo. Então eu fiz a parte com o...DENT: Com Sérgio Pena.
SALZANO: É. Eu fiz um capitulo revisando tudo isso. Então tem para todos esses
outros países também. E a gente fez um inquérito, através de um formulário, 00:46:00solicitando informações para os geneticistas médicos do Brasil, envolvendo uma série de pontos relacionados com essa questão do impacto do aconselhamento genético e essas coisas. Vamos ver uma coisa aqui, a questão do regulamento, página...DENT: Cem, acho.
SALZANO: Cem. Então era uma amostra representativa de 32 geneticistas médicos
sobre os problemas éticos, e mais especificamente, o Sérgio Pena tinha, já tem, um serviço diagnóstico e de análise desses problemas de caráter privado inclusive. Então a legislação, lógico, tem a questão do aborto, que é proibido, e aquilo que a gente fala, é a necessidade de novas leis por essa questão, não só do aborto, mas outras questões relacionadas com esse... mas 00:48:00não tem nenhuma legislação aqui indicado.DENT: Só vou confirmar que tudo vai bem com a gravação. Acho que sim. Segue
gravando... que medo. Então para esse assunto das provas genéticas não tem um [nenhum] regulamento que você conhece. Mas durante os últimos 60, 50-60 anos, mudou muito o regulamento para pesquisa com seres humanos, não? Podia comentar um pouco como era e como mudou com o tempo?SALZANO: Pois é, como eu te falei -- aquele documento da WHO que a gente fez na
década de '60, ele apresentava todos os pontos que hoje são abordados de maneira muito específica pelos órgãos de bioética. Então, para muitos pesquisadores esses princípios eram princípios que se aceitava sem discussão. Agora, lógico, houve muitos abusos em diferentes lugares do mundo com relação 00:50:00a isso, essas pesquisas. E foi isso que eventualmente levou ao surgimento dessa nova disciplina que é a bioética.DENT: E essas mudanças do regulamento aqui no Brasil, como impactaram as
pesquisas que vocês estavam fazendo e que seguem fazendo aqui no departamento?SALZANO: Influíram bastante, porque, como eu falei acho que antes, agora há o
que chamo de "genéticafobia". Sabe o que é isso -- "fobia, fobia. Fala de DNA, todo mundo fica horrorizado, acha que isso vai patentear o genoma da pessoa, etc. E isso refletiu também, parte nessa regulamentação desse conselho nacional de ética em pesquisa, que é o CONEP, que é um órgão nacional e que regulamenta. Quer dizer, qualquer tipo de pesquisa que envolva seres humanos e que envolva DNA, tem que ser julgado por esse órgão nacional e não pelas 00:52:00comissões institucionais. Tem os conselhos de ética institucionais. Aqui na UFRGS tem um. Qualquer tipo de investigação que se queira fazer tem que passar inicialmente por esses órgãos, naturalmente. Essa aprovação, às vezes, demora meses e isso pode prejudicar o ritmo das investigações.DENT: E agora para armar um estudo, digamos, com uma população indígena.
SALZANO: Ish... daí é complicadíssimo.
DENT: Tem que ter primeira a aprovação do comitê de ética da universidade...
SALZANO: Exato...
DENT: Depois...
SALZANO: ...e eles não se manifestam. Eles encaminham. Primeiro verificam se
não há nenhuma falha muito grande. Mas eventualmente vai a caminho para a CONEP, essa comissão, e essa comissão geralmente também, se é grupo tribal pede um parecer da FUNAI.DENT: Então de CONEP vai para a FUNAI.
SALZANO: É, aí volta para a CONEP. E se você quer.. mesmo depois de aprovado
00:54:00pela CONEP, tem os conselhos tribais. Então tem que fazer o contato para que eles deem essa aprovação também.DENT: São quatro órganos [órgãos] então que têm que revisar qualquer projeto.
SALZANO: Quanto tempo? [confusão linguística]
DENT: São quatro órganos [órgãos], o comitê de ética, o CONEP, a FUNAI e o
conselho tribal.SALZANO: Ah sim. Quatro níveis.
DENT: Níveis... Então quanto tempo toma agora para uma aprovação?
SALZANO: Olha, eu tenho informação sobre esse projeto genographic, que é um
programa do National Genographic Society, que então está sendo desenvolvido em todo mundo. Para a aprovação desses estudos no Brasil, levou pelo menos três anos, então... indo e vindo pedidos de informação... a pessoa responsável aqui foi o Dr. Fabrício Santos, aqui no Brasil, que trabalha em Belo Horizonte. E ficava desesperado, xingava todo mundo... 00:56:00DENT: E...
SALZANO: Ele conseguiu aprovações muito mais simples em outros países da
América do Sul. Ele trabalhou também no Peru, na Bolívia. Foi possível realizar coletas lá muito antes das coletas aqui no Brasil.DENT: E tem algum sistema aqui de revisão por expertos. Então, por exemplo, se
outro grupo de genética humana quer fazer um projeto, alguma vez encaminham essa informação para você para revisar e dar uma opinião? Ou é uma coisa que manejam somente dentro dos...SALZANO: Não, tem que haver o financiamento, né? Então, eu recebo muitos
processos para dar parecer pelos órgãos de financiamento brasileiros que são o CNPq, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, a CAPES - hoje mesmo tem um parecer aí, um processo e as fundações estaduais também para a pesquisa.DENT: Por exemplo, Fiocruz seria um...ou...?
SALZANO: A Fiocruz... só tive uma experiência com a Fiocruz. Uma visita de
00:58:00inspeção dos grupos lá. Mas eles financiam só os seus.DENT: Ah, então...
SALZANO: Então é mais... só os membros da fundação.
DENT: É... então agora que tengo [tenho] uma ideia de como vai ser a
aprovação de agora, pode contar de novo como era uma aprovação nos anos '70. Como era em comparação o processo? Sé se submetia diretamente para a FUNAI?SALZANO: Sempre é demorado, acho que eu lá falei isso.
DENT: Sim.
SALZANO: Tinha que ir na última hora lá pra FUNAI pra conseguir o documento
que, senão, não faria o trabalho de campo. Trabalho de campo com população tribal tem que ser tudo bem planejado com antecedência. É um drama, sempre.DENT: Mas nesse tempo só foi uma aprovação por o FUNAI ou existiam outras?
SALZANO: Não... Cada trabalho de campo tinha que ser independente.
DENT: Não... ou seja, quero decir [dizer]... temos quatro níveis agora para
uma aprovação. Mas nos anos 70 foi só uma aprovação por FUNAI ou existiam outros conselhos que tinham que aprovar?SALZANO: Nós sempre tínhamos sempre que conseguir a aprovação da comunidade,
01:00:00né. Então, sempre, no primeiro dia, a gente reunia a comunidade, explicava quais eram os problemas... o que que a gente queria fazer e aí estávamos abertos a qualquer tipo de pergunta. E depois também, ao longo do trabalho de campo, se alguma família não quisesse colaborar tinha completa liberdade para fazer isso.DENT: Um-hm. E varia muito de experiência à experiência esse processo de
reunir a comunidade para explicar? Ou era uma coisa que mais ou menos foi... Como era?SALZANO: Não, variava muito. Em alguns casos a gente também não reunia todo
mundo, reunia só os líderes. E explicava para eles e tal. E buscava aprovação. Em outros havia maior número de pessoas envolvidas.DENT: E como comparava, por exemplo, um grupo como os Kaingang, que falam
português, com uma experiência com os Xavante que não... nesse tempo vocês estavam trabalhando com o David Mayberry-Lewis, estava fazendo as interpretações ou estava lá um intérprete específico? 01:02:00SALZANO: Como assim?
DENT: Desculpe. [risos] É "decir [dizer]... quando vocês fizeram um processo
de aprovação da comunidade, no português, como comparava com uma experiência com um tradutor? Ou um intérprete?SALZANO: Ah, com tradutor é... Eh, não havia diferença eu acho, marcante
não... acho que eu já falei antes que alguns grupos mais aculturados havia maior problema, mas com pessoas específicas da comunidade. Se recusavam a fazer a coleta de material, e começavam a questionar o procedimento e tal.DENT: Que tipo de perguntas recebiam das comunidades no momento de explicar um
programa. Porque uma pesquisa da genética das populações é bem... às vezes até eu não entendo muito bem, que estudei biologia também incluso [inclusive]! Que tipo de perguntas fizeram? Como era a conversação?SALZANO: Eram basicamente muito gerais, lógico. Não tinham conhecimento e a
ênfase que a gente sempre dava era a importância médica. Independentemente depois de aspectos mais teóricos. É difícil de compreender, para pessoas leigas, não somente grupos tribais mas também aqui em Porto Alegre.DENT: Como os estudantes de pós-doutorado de história, talvez? [risos] É,
01:04:00interessante. Mas nunca receberam perguntas das crianças que estavam participando? Das pessoas que estavam participando no [do] estudo? Eles...SALZANO: Não muito específica, né... elas queriam saber só exatamente o que
ia ser feito com o material coletado e tal... E a resposta também não podia ser muito específica.DENT: Claro. E você agora acha que...
SALZANO: Eles não perguntavam assim: "a colonização da América foi feita por
uma onda migratória, ou três ondas migratórias..." Não, não foi assim.DENT: [Risos]. Claro. Mas, não sei... estou tentando imaginar pelo ponto de
vista deles como era a experiência de ter um grupo de pesquisadores que chegam à comunidade e que querem fazer uma pesquisa. Então não sei se alguma vez você teve alguma conversação, por exemplo- as crianças sempre perguntam coisas muito pontuais, não? Sabem perguntar exatamente uma coisa... e, às vezes, a gente tem uma ideia de como estamos trabalhando e nessa interação de explicar pode sair algumas coisas interessantes, não?SALZANO: É não, mas não me recordo. Geralmente eles vinham em grupos
01:06:00nucleares, a família nuclear, o pai, a mãe e as crianças. E aí, eventualmente algum dos pais podiam fazer uma pergunta, mas as crianças não.DENT: Não era muito íntimo então, o contato... era assim, rápido?
SALZANO: Isso.
DENT: Claro que tinha muito trabalho que fazer... E você voltou muitas vezes
para algumas comunidades, não? Quais são as comunidades tribais que passou mais tempo ou que conhece melhor?SALZANO: Especialmente os Kaingang, aqui do Rio Grande do Sul, que era mais
fácil de voltar. E os Xavante que... bom, também, Kayapós também a gente esteve uma vez e depois voltou. Acho que foi uns três grupos mais, que a gente interagiu mais do ponto de vista de retorno.DENT: E tem uma ideia de quantas vezes você foi para as comunidades dos Kaingang?
SALZANO: Eh... Difícil de dizer porque isso foi objeto de minha defesa de
tese... não só aqui no Rio Grande do Sul.... parece que isso eu te tinha mostrado já?DENT: Sim.
SALZANO: Se esse aqui não é só a mesma coisa... [páginas virando] acho que
01:08:00eu não tenho aqui a informação, não. Mas, especialmente Nonoai, eu fui várias vezes. Ah, em todos eles a gente foi mais do que uma vez.DENT: E vi nos arquivos que tem aguardado [guardado] um comentário que você
escreveu sobre um artigo que saiu dizendo que os Kayapó, os Kaingang, quase eram extintos. E lá você escreveu: "os meus amigos Kayapó e Caingang ficariam muito...SALZANO: Surpresos...
DENT: ...surpresos ver que o autor escreveu tal coisa." Eu queria saber um pouco
como era, para você, a experiência de ler uma coisa que fala assim, com o conhecimento que você tem, e também no contexto do contato sostenido 01:10:00[prolongado] com o grupo lá na comunidade.SALZANO: Isso.
DENT: Como viu este tipo de publicação? Porque não é só um... que você
respondeu assim, corregiendo [corrigindo] algumas coisas, não? Porque assim funciona as ciências, não? Sempre os expertos tem que estar em conversação para corrigir a informação que é publicado.SALZANO: Isso.
DENT: Mas, queria saber como era para você ler lá que estavam quase extintos?
SALZANO: É que houve uma reviravolta grande com relação a essa questão da
eventual extinção dos grupos indígenas. Então, muito antes do que eu haver começado a trabalhar, tem aquela história do último dos moicanos dos Estados Unidos. Era um livro e um filme que havia o último dos moicanos vivos e depois a tribo se extinguiria. Atualmente tem milhares de moicanos nos Estados Unidos, só que tem uma mistura interétnica grande também. E, então, na década de '50, havia um temor generalizado sobre o destino desses grupos tribais, e não era à toa. Porque, da descoberta europeia até aquela época, quase 500 anos, 01:12:00tinha havido uma série de extinções de grupos tribais, devido aos problemas de saúde, pelas novas doenças e outras questões relacionas com a perturbação da vida tribal. E isso foi se modificando ao longo do tempo devido ao padrão de assistência que eles iam começando a receber, e com isso a população começou a aumentar. As populações que, pelo menos, tinham sobrevivido àquele impacto do contato inicial. Então, agora há muito menos preocupação com relação a isso, do que era verdade antigamente. E também começou a se coletar informações demográficas, não só entre indígenas de reservas, como também indígenas urbanos. E isso fez com que a população estimada de indígenas, entre os dois últimos censos do Brasil mais do que duplicou. E isso, então, é devido à melhoria no censo, no processo de 01:14:00"censoriamento", digamos, como também as pessoas começaram a se auto identificar como indígenas quando antes tinham essa reação contra isso.DENT: Eu estava- antes de vir para Porto Alegre - estava trabalhando no museu do
índio lá no Rio. Eu encontrei um documento que fala do processo do congresso do Rio Grande do Sul, acho que no ano '58 talvez, que você iniciou uma protesta [protesto] contra uma lei para dividir o espaço, a reserva dos Kaingang.SALZANO: Exatamente.
DENT: Pode contar como lembra que era essa questão?
SALZANO: Ah não, é porque, lógico, essas reservas estão sempre na mira dos
agricultores ou de outros tipos de pessoas que desejam a terra, a terra e especialmente a madeira que tem nas matas. E, então, o que aconteceu foi que um deputado da região, local lá de Nonoai, ele propôs uma lei de divisão da 01:16:00reserva e isso sem dúvida deveria prejudicar a população indígena que lá estava. E eu procurei mobilizar tanto os órgãos aqui locais do estado, em Porto Alegre, como uma série de outras pessoas preocupadas com a questão indígena- inclusive do exterior - para que reclamassem quanto a esse projeto de lei. E aí no fim foi recusado, né... [risada].DENT: E existe outros exemplos onde você estava involucrado [envolvido] no
processo legal de proteção das comunidades?SALZANO: É... isso foi então numa época em que não havia organizações
indígenas de autodefesa. No momento em que eles começaram a se organizar, a minha participação se tornou, até certo ponto, supérflua. E bom, continuo apoiando qualquer tipo de reivindicação indígena, mas realizado de uma maneira mais afastada, não diretamente vinculada a esses órgãos.DENT: Um-hm. E dentro de essa primeira ocasião de processo legal estiveram lá
01:18:00representantes dos Caingang para falar ou...SALZANO: Não. [risada] Não.
DENT: Nesse então não...
SALZANO: Naquela época não havia essa preocupação em que as populações
minoritárias manifestassem. Bom, talvez até houvesse mas eu não tinha conhecimento. Na verdade, a discussão foi toda do corpo legislativo em si. Então, no momento em que, através de manifestação específica e de cartas de pessoas, inclusive de fora, que manifestaram a sua autoridade com os indígenas, acho que se deram conta que não deviam fazer isso.DENT: Dentro do trabalho com os Kaingang, estabeleceu você alguma relação,
alguma amistade [amizade] com um líder do grupo lá, ou uma pessoa dentro da comunidade que era um contato para os estudos? Eles algumas vezes ajudaram para os estudos... eles em alguma ajudaram com alguma coisa quando estavam fazendo?SALZANO: Houve uma interação, mas não muito pessoal com esses lideres. Na
01:20:00época, quem se preocupava mais com as relações institucionais era a FUNAI mesmo. E houve uma, posterior, durante um outro governo que uma reserva importante perto de Nonoai foi invadida e não teve jeito. Foram divididas em lotes, na época do governador Leonel Brizola. Tinha uma ideia de que devia se fazer reforma agrária, que eu concordo, mas não uma reforma agrária que aliene terras de grupos minoritários. Então, era uma reserva próxima de Nonoai que... É a Serrinha. Essa que foi eventualmente totalmente invadida.DENT: Queria confirmar como se escreve...
SALZANO: S-e-r-r-i-n-h-a -- uma serra pequena.
01:22:00DENT: É, serrinha, sim... além do pernambucano que você me contou o outro
dia, algum representante do FUNAI, lembra de alguma experiência trabalhar conjunto com ele? Não sei se tiveram mulheres trabalhando no FUNAI, nos postos?SALZANO: É, naquela época havia funcionárias mulheres, mas em geral o chefe
do posto era masculino. Mas lá nos Kaingang, naquela época tinha uma senhora que era funcionária da FUNAI que era a esposa do chefe do posto, e que era muito ativa. Ela que no fim tomava conta do posto e dos índios, e não o marido. Se chamava a dona Loca -- Loca: l-o-c-a. A Dona Loca era folclórica.DENT: [risos] Sim. Que fazia que era assim, muito ativa?
SALZANO: Cuidava de tudo, da parte médica. Porque o posto da FUNAI sempre tem
também a enfermaria e as escolas. E ela supervisionava tudo. Dava até a benção. Sabe o que é a bênção?DENT: Não.
SALZANO: [risos] Quando você tem, vai ao papa, você beija a mão do papa...
01:24:00DENT: [risos]
SALZANO: ...e ele dá a benção, faz uns sinais cabalísticos. Ela fazia isso
com os índios se eles tinham problema de saúde iam pedir a benção da Dona Loca.DENT: Algum outro funcionário com quem deu bem ou...
SALZANO: Um dos também que influenciaram bastante foi... lá dos Xavante, sabe
o nome dele?DENT: Leitão. Ismael Leitão, era?
SALZANO: Isso, é...
DENT: Ele estava lá as duas vezes que vocês foram?
SALZANO: É, trabalho de campo eu só fiz lá em São Domingos que é essa
primeira aldeia, eu só fui uma vez. Fui depois em outras, outras comunidades...DENT: Claro. Então a parte dele, do pernambucano e da senhora....
SALZANO: Ah, sempre tinham outros. Eram muito variados.
DENT: Mas...
SALZANO: Tinha o caso do grupo Kayapó, que a gente ficou isolado total de
qualquer outro centro. Havia um encarregado da FUNAI muito particular. Forte. 01:26:00Alto, forte, era bem do tipo rural brasileiro, praticamente analfabeto, mas muito simpático e tal. E a gente ficou lá para dez dias, uma semana, duas semanas. E a esposa dele que cozinhava pra nós e eles tinham pouco recurso. Então, a gente sempre comia carne de veados - sabe o que é veado? ...que ele mesmo caçava, que os índios caçavam, e com muito pouco tempero. Era um drama... Não sei se eu te falei isso, mas, então a gente... a festa era ir lá na casa de um missionário inglês que estava do lado do posto da FUNAI e que servia um chá inglês com bolachinhas, no fim da tarde. Foi compensar a carne insípida lá da esposa do chefe do posto.DENT: [Risos]... os meus pais são ingleses, então também tenho a tradição
01:28:00de tomar chá de tarde, que aqui é um pouco complicado pedir chá preto com leite frio. Imagina, os brasileiros ficam pensando que é muito raro. Engraçado. Então, esse missionário inglês estava lá ao lado do ponto dos Kayapó?SALZANO: É. Um dos grupos dos Kayapós. É, o posto era chamado Nilo Peçanha.
DENT: Como é?
SALZANO: Nilo Peçanha. P-e-ç-a-n-h-a.
DENT: Hmmm tá.
SALZANO: Que eram os Kubem-kran-kegn, um subgrupo Kayapó. Os Kayapó têm
subgrupos bem diferenciados.DENT: Como era o nome?
SALZANO: Kubem: k-u-b-e-m. Kran: k-r-a-n. Kegn: k-e-g-n. Complicado.
DENT: É. Tá. Bem interessante. Está cansado? Acho que até...
SALZANO: Quer parar?
DENT: [Risos].
SALZANO: Tem um compromisso agora?
DENT: É, eu tenho aula de português [risos].