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DENT: Hoje é dia 23 de julho de 2014. E estou aqui de novo com o professor
Fernando da Rocha. Então vamos começar aqui... Tá.ROCHA: Então, Rosanna, a coisa é mais ou menos assim. Vamos começar a
história do começo, né?DENT: Ótimo. Pode começar. Só vou pegar uma cadeira aqui.
ROCHA: Como toda história, vamos começar do começo.
[pausa]
Eu entrei, eu te falei já, não lembro. Eu entrei nesse grupo, porque o Salzano
tinha um projeto muito grande. Ele, na verdade, ele já tinha saído uma vez para os Xavante e eu não tinha ido, não estava lá. Ele foi com o outro cara, e o Girley foi. Então a ideia dele era fazer um levantamento... Isso tem escrito nos trabalhos... Fazer um levantamento, uma caracterização de cada grupo populacional, dentro de cada tribo. As tribos e os grupos. Já sabia que as tribos se subdividiam, né? Na verdade, a coisa é mais ou menos assim. Tu vai na beira do rio sempre, para ter comida, água e tal. Aí uma família se é suficientemente capacitada para descer ou subir o rio, e acabar com o jugo do chefe lá, né? E ela vai fazer... Eu imagino que eles pensavam assim, vai viver, ia ter bastante filho, pesca, caça e o negócio todo. Ele sabe que ele vai ter que pescar e caçar e a mulher, lenha. Então, ele migra pra cima ou pra 00:02:00baixo dos rios em geral. Então quando tu anda dentro do Xingu, tu encontra vários grupos, subgrupos, Kayapó, né? Enfim, e forma tua nação pequena, teu grupo, população, que é uma família aumentada de alguma coisa. E essa família aumentada de alguma coisa se torna lá na frente, vinte anos depois, um grupo homogêneo, lá na frente.Então, o Salzano... Eu acho que a ideia dele era levantar, dos principais
grupos já conhecidos pela própria FUNAI, a descrição da FUNAI, e por coisas, autores antes que vieram fazendo expedições esporádicas, mas não com fins científicos. Aquele lá tem grupo assim e assim... Acho que foi assim que Salzano se guiou também. E então quando entrei lá na Genética, 1961, eu sabia, que ele, Salzano, estava publicando os primeiros trabalhos sobre indígenas. Que era grupo sanguíneo ABO do grupo não sei o quê lá, Xavante. Haptoglobina do grupo não sei o quê... Alguns marcadores genéticos que ele estava já tipando em alguns grupos. Numa ou duas que ele teria feito. E a ideia dele era, para completar o tipo de trabalho dele, fazer um levantamento morfológico do grupo. Antropométrico do grupo. Então quando eu entrei lá na Genética, ele me falou isso e eu disse: "Tá". E seria minha tese de doutorado, 00:04:00objeto da tese. E foi assim que a coisa começou.Mas eu trabalhava em outra coisa aqui em Porto Alegre, eu trabalhava em
genética de sangue, eu te falei isso. Passou um tempo, aí eu fiz um treinamento primeiro em antropometria, medições. 16 medidas ou 18 medidas antropométricas. Tamanho de crânio, tamanho de tórax, cintura escapular, cintura pélvica... Espessura da panturrilha ou a [inaudível] da face, bigonial, enfim, de estruturas físicas. Então, a ideia era tu marcar um grupo com esses marcadores genéticos simples que o Salzano fazia, e com uma outra, um outro enfoque era da morfologia. E aí era o Fernando que entrava.Como é que a coisa acontecia? A gente chegava numa aldeia já previamente
estabelecido o que tinha naquela aldeia. Anunciado. E a chegada era a apresentação do grupo que ia trabalhar pros índios. Pegava um chefe ou dois chefes importantes. E explicava para eles mais ou menos o que que se ia fazer. E se distribuía presentes. Nessa época, nesse dia. Um calção pro marido, um vestido para a mulher, um shortzinho pro filho. Enfim, presentes, coisa simples. E o grupo ficava num compromisso de voltar em famílias. Isso era organizado por alguém lá do grupo deles. No caso do Kayapó, por exemplo, era o Raoni, 00:06:00que era um chefe índio. Um metro e noventa e quatro, eu nunca vi, um índio enorme. E depois, ele apareceu no noticiário nacional. Ele fez alguma coisa, não me lembro o que que foi no Brasil. Esse cara, o Raoni.DENT: Ele ainda vai lá na FUNAI.
ROCHA: Vai?
DENT: É. Ainda é liderança.
ROCHA: É mesmo? E tu conheceu ele?
DENT: Pessoalmente, não. Mas eu vi ele lá na FUNAI.
ROCHA: Mas viu foto dele? É um sujeito bonito, grandão, né? Raoni. Um
dia... Contei história de todos os lados. Mas enfim, então a coisa era assim. Aí...DENT: Ele ajudava... O Raoni ajudava a trazer as famílias?
ROCHA: A selecionar... é... isso. E dava força para nós, né? Eu imagino que
algum outro não quisesse, ele: "Não, tem que ir lá, tem que ir, tem que ir." Eu imagino. Porque ele tinha força, era um dos chefes, parece, o Raoni. Bom. E então aí começaram. Eu fui com o Girley. Eu tinha uma máquina fotográfica, uma rollerflex, que eu usava a tiracolo. Eu tinha que achar um lugarzinho pra mim poder botar uma mesa, umas coisas. E os aparelhos, os antropômetros, os calibres e tal. E começava a medir, pesava, media. E aí, ainda comecei a fazer também demartoglyphics. Nesses grupos de palmares, plantar e impressão digital e palmar, de todos. Era uma dificuldade tu pedir para um índio de 30 anos fazer assim com a mão, botar em cima da garrafa, que eu ia rolar a garrafa. Quando eu rolava a garrafa, a mão dele ia junto, então saía a impressão. Ficava contente da vida. Às vezes, não dava. Mas enfim, esse era 00:08:00uma parte do trabalho. Media e o Girley ficava anotando os números. Repetia. 14,3 e repetia. [inaudível] fichas, né? Todo tempo. 3, 4, quanto tempo fosse necessário, media, né?E o Salzano sentava perto assim. E o Salzano fazia autuação do número de
filhos de todos, né, demografia. E assim que nós trabalhávamos o dia inteiro. Aí ia no rio, tomava banho, o Girley fazia a janta. Às vezes fazia um ovo frito. E um café, né? Essas coisas. E nós íamos dormir. Dormir não. O Salzano insistia em ir lá na pista de aviação. Então tinha que caminhar depois da janta. E caminhava na pista. Escuro, escuro. E ele: "Se existe Deus, que apareça", essas coisas. Ele falava. Eu digo: "Pô, tu tá chamando o Deus e tu..." Quase sempre ele fazia isso. Aí nós voltávamos por aquele caminhozinho e tal. No outro dia, levantava cedo, a mesma coisa. Cedo as índias passavam pro rio. E os índios também. E na volta, as índias com aquelas cargas de lenha nas costas, né? E os índios com os peixinhos deles lá. E assim foi, né? Tudo certo. Lá em Yanomami, foi um pouco diferente. Não tinha rio. Aldeia, não tinha essa coisa, mas a lenha vinha sim. Eu deixei tudo com o Salzano. Ele te mostrou? Os slides.DENT: Não, não vi os slides ainda. Depois eu vou perguntar para ele.
ROCHA: Não? Tem. Deve ter lá naquele... Ah, agora é noutro gabinete, lá no
campus. Mas ele deve ter slides. Eu deixei tudo.DENT: Pode comentar um pouco mais sobre o processo de tomar tantas medidas de
00:10:00tantas pessoas? Tinha um sistema? Como era, lembra como era fazer isso por...ROCHA: A rotina?
DENT: Sim.
ROCHA: Assim, ó. Vinha a família e a família ficava direitinha, assim, como
se fosse um consultório médico. Aí passava o marido, aí eu media. Começava a medir peso, balança, depois media a estatura, ossatura. Aí eu media tronco. Inspirar e expirar. Ombro. Abertura de ombro. Abertura de quadril. Depois crânio, bigonial, bizigomático... Depois, circunferência da perna, panturrilha, era uma sequência, né? Dezesseis medidas. Todos faziam. E daí fazia, quando é adulto, criança não dava, fazia dermatoglyphics. Da palma da mão e dedo, ponta do dedo. Era pesado.DENT: E como eram as respostas dos índios?
ROCHA: Eles achavam gozado. Uns riam, uns se olhavam e riam. Deviam comentar
entre eles, né? Mas, assim, ali não dava. Tinha aquele, ficavam na porta observando, paravam assim encostados. Até uma coisa estranha, como seria para nós também, não é? Três caras bêbados. Bêbados, não. Estranhos. Na comunidade. Está na hora de impressão palmar, também era... Achava muito gozado. E a fotografia. De frente e perfil. Aí quando terminava a família, 00:12:00ou terminava o número de familiares, o Salzano anotava os dados demográficos. E a família ia embora.DENT: E como era o processo, assim, falar o que eles tinham que fazer? Tinham tradutores?
ROCHA: Não, não. Tinha a língua internacional.
DENT: [Risos] Assim indicando com as mãos o que que eles tinham que fazer...
ROCHA: Isso. Isso. Não aperta muito, ou aperta. Isso.
DENT: Aí como fazer leve, para fazer as...
ROCHA: É, é... [inaudível] Às vezes, não dava, né? Porque eles não
entendiam. Mas 90% das vezes, eles se faziam entender assim.DENT: E no caso do professor Salzano que estava anotando a genealogia, como ele
fazia para entender...ROCHA: [Risos] Eu gostaria de saber também. Porque ele tinha intérprete em
algumas ocasiões. Acho que uma vez, tinha um missionário lá que falava alguma coisa. E o Raoni. Raoni, dos Kayapó, o Raoni era Kayapó, grupo txucarramãe. Txucarramãe o Raoni. E ele conhecia tudo assim, ele conhecia o Villas Boas. E eu tinha um pacote que eu levei, acho que não sei se foi sapato ou panela. O Girley tinha assim. E o papel era um jornal. E do jornal, tinha fotografia de Brasília. E quando o Raoni viu, disse: "Basília". Era muito esperto o cara. 00:14:00"Basília". Eu disse: "Brasília. Tá certo." Ele é vivo ainda, acho, né?DENT: E aí... Tinha, assim, algumas das pessoas que estavam nas aldeias que
ajudavam de algum jeito, se eram caciques ou se eram, assim, intérpretes... Tinha algumas que eram pessoas que você como que mais conhecia ou passou... Tem mais lembranças sobre algumas pessoas?ROCHA: Não. Não. Em geral, aí nesse grupo, era o Raoni que ficava ali mais,
né? Mas era assim, ó... Eles se ajudavam também. A impressão que eu tenho é que eles diziam, se comunicavam entre eles, porque quando um vinha pra cá, o outro ficava lá da família. Falava qualquer coisa, aí vinha, fazia direitinho, né? Não teve nenhum problema nunca. Eu não tive nenhum problema com ninguém. A não ser postar a mãozinha deles, né? Que, não com muita força. Das mulheres, das velhas e dos velhos. Os moços, não, os moços já faziam certo. Chegar num grupo de indígena e sendo o terceiro grupo branco da época. Os txucarramãe. Parece que o Villas Boas vai... Nós éramos os terceiros, o terceiro grupo que ia nessa aldeia visitar. Tinha ido um cara antes que até tinha dado confusão com o cara. Então... Achava estranho, mas não deu, nunca deu nenhum problema. E eu imagino que o Salzano não tivesse também, porque eles traziam as crianças, tinha que trazer as crianças. Aí ele perguntava em linguagem internacional: "filhos?". Eu não sei, não veio 00:16:00esses dados do Salzano, eu não sei onde é que ele publicou, se está junto comigo.Mas... O que que é importante, eu acho, é que no meu caso, da morfologia,
antropometria, existe uma estatística para ANAC, que se faz na área, que chama d2 Mahalanobis, é um cálculo de d2 Mahalanobis. Exatamente, ele pega as medidas antropométricas e análise de variância, inversão de matriz... É um cálculo estatístico, matemático, que eu tive que ir lá em Campinas, lá em Ribeirão Preto aprender. Em Rio Claro. Tinha um programa, tudo. Então, isso te dá um número no fim. Aí em relação a isso, tu tem esse número, essa medida.E esse número que deu aqui, nos Kayapó, eu posso medir com o grupo Xavante. É
um número que eu posso medir a significância da diferença. Isso que são os meus dados. E o do Salzano... Quantos filhos tem? Quatro filhos. Então... Quatro filhos por casal, então essa é a média. Na outra tem três, quatro mais três, sete. Então é três e meio. É aritmético, né? E o Salzano fazia ainda, além disso, ele fazia a parte de demografia, tinha fotografia. Que eu dizia: "Pra que foto, Salzano?" "Tá, porque um dia a gente pode fazer..." É porque depois apareceu um cálculo, não sei se isso aí é real, se aconteceu, mas ia acontecer, que se ele pudesse fazer cálculos pela fotografia, de se medir a distância, sabendo a distância, tal, tal. Eu nunca 00:18:00soube disso. Eu nunca soube disso. No que que terminou, se se fez ou se não fez.DENT: Sim, acho que tem análises, assim, que fazem com fotografias
estandardizadas. E não sei se podem usar as mesmas técnicas para fotografias mais velhas, mas... Tem uma pós-doutoranda que agora passou num concurso na USP, lá da UFRGS, que ela trabalha um pouco com essas questões.ROCHA: Como é o nome dela?
DENT: Tábita. Tábita Hünemeier.
ROCHA: Qual é a nacionalidade dela? Egípcia?
DENT: Ela é daqui de... Ela é alemã.
ROCHA: Tábita?
DENT: Tábita. Aham.
ROCHA: Tábita. Não conheço. Bom...
DENT: Ela não é nova na... Acho que ela fez doutorado e pós-doc, agora ela
entrou na USP como professora, ela vai lá. Mas ela faz essas análises de fotografias.ROCHA: Ah, então tá. É, por isso que o Salzano... "Não vou perder a
oportunidade." [inaudível]DENT: E com a questão das impressões digitais, como era a análise, como se
analisava esses dados?ROCHA: A gente não analisava lá, eu trazia todo o material para Porto Alegre,
que o Salzano tinha um bolsista, que eu não sei que fim levou. Que fazia finger print, fazia análises das cristas dérmicas e tal. E os pontos não sei o que, verticilos, isso aí eu não sei. Foi uma pessoa, seria bolsista dele. Não sei se ele chegou a ter esse bolsista. Mas ele tem essas coisas. Ele não bota nada fora, né? Ele tem guardado para análise. Depois eu soube que teve gente lá no departamento que andou pegando, usando as coisas, dos dados e tal. Que é o que tem que ser, né? Não sei se isso foi analisado.DENT: Mas naquela época, tinha um método, tinha interesse nessas questões da
00:20:00variedade dermato?ROCHA: Não, não. Como isso não é a minha área, eu só funcionei como
técnico ali, né? A fotografia também, né? Levantei esses dados para quem quisesse analisar. Alguma coisa eu sei que já foi analisada. Não sei se pela Lavínia. Tem outra guria que eu conheci de nome também, que parece que andou analisando alguns dados. Os dados não são meus, são da ciência, né?DENT: [Risos] E compartilhados, né? Aí no momento de fazer medições
antropométricas com as crianças, como... Como vocês conseguiram isso?ROCHA: É difícil. É difícil, é difícil. Quando a criança é muito
jovem, quer dizer, a dificuldade é tanto maior quanto mais jovem a criança, lógico. Uma criança de dois anos, três anos, é difícil, muito difícil. Então aí eu procurava fazer altura e peso e pronto. E não tinha como fazer medidas. Medida craniana... Dizer para a criança: "respira, inspira!" Sem condições, né? Então eu deixava de lado deixando para um próximo Fernando que fosse lá dali a 10 anos fazer já no adulto.DENT: [Risos] Sim. Você tinha experiência também fazendo essas medições
antropométricas em outras populações no Brasil?ROCHA: Tinha, tinha...
DENT: Como comparava trabalhar, assim, em Porto Alegre com trabalhar com os
00:22:00grupos indígenas?ROCHA: É uma boa pergunta, né? Nunca me ocorreu isso. Mas assim, de antemão,
assim, eu posso dizer que eu fiz isso, em Porto Alegre, em soldados. Do exército nacional. Fomos num quartel, Salzano falou? Fui no quartel, ele fez uma análise desse tipo, antropometria. Mas aí os dados são relativos à população caucasoide branca, brasileira. São dados já conhecidos, já existentes. Ao contrário do que em uma população como a nossa, aqui do Rio Grande do Sul, que é poli-híbrida. Pega um cara. "Que que tu é?" "Eu tenho um avô alemão, tenho uma avó dinamarquesa, eu tenho uma daqui, pelo duro aqui do [inaudível], né? E outro da linha de [inaudível]. Sou italiano. Eu sou... " Então essa pluralidade, essa mistura racial muito grande, provavelmente deveria ser observada com esses dados aí. Mas eu medi jovem de 18 anos das mais diversas nacionalidades.DENT: Mas como era, assim, na interação, no momento de tomar as medidas, era
diferente medir? Imagino que era diferente, soldados entendiam que você podia comunicar... E como comparava, assim? Tinha outras comparações, coisas diferentes, coisas semelhantes entre fazer esse processo de fazer dezesseis medidas por pessoa com um grupo aqui na cidade comparado com lá na aldeia? 00:24:00ROCHA: Ah, não. É, eles também achavam gozado. E eu fazia ainda um teste,
junto da medição, eu fazia um teste de suor. Eles ficavam com pé dentro de água quente e suavam. Eu media o teor do suor. Mas eu não analisava. Fazia o trabalho de técnico, nem sei que fim levou esse dado, se é que o Salzano ainda tem. Mas não, a dificuldade, eu diria até que entre os índios, entre os índios, era mais fácil. Por quê? Porque nesse outro grupo populacional, o questionamento é maior. "Por que que tu tá fazendo isso comigo?" Algo desse tipo, uma pergunta desse tipo. Não sei, não me lembro se perguntavam assim, mas eu imaginava que isso fosse... Ou teriam perguntado. "Por que que tu quer isso?" Dermatoglyphics e coisa. E lá, não. Lá, coitadinhos, estavam lá para... O cara mandava, ele fazia, o índio mandava lá, ele ia. [inaudível] Ele ia e fazia. Às vezes, não fazia, mas em geral, era até mais dóceis do que essa outra população. [Risos] Eles achavam gozadíssimo, assim...Fotografia então era um negócio seríssimo, porque tinha uma máquina, uma
rollei, que é uma máquina boa, né? Rollei... [tosse] desculpe. E tu... [espirro] Desculpe. Que tu podia olhar no visor, tu levanta aqui e olha, e como é que saía lá, né? Era tipo, é uma máquina antiga, mas às vezes já via alguma coisa. E índio é muito curioso, índio, muito desperto. Ingênuo, 00:26:00esperto. Cooperativo. Nós não tivemos nenhum problema de nenhuma natureza. Tenha certeza. Nem o Girley, nem eu, nem o Salzano. Nem os que vieram junto, o Napoleon... Um pediatra, não me lembro o nome dele. Um grupo veio junto, né? Um pediatra... Nos Kayapó foi. Depois foi um médico paraense muito amigo nosso, Manuel Ayres, conheceu ele?DENT: Pessoalmente, não, mas...
ROCHA: Pessoa super querida. Já morreu também. Ele é pediatra. É de Belém
do Pará. [Risos] E era também a primeira viagem dele pros índios. E ele ficava meio do meu lado, assim, e do Girley. Eu e ele éramos os primeiros, né? Girley já tinha ido com Salzano. Depois voltamos para Belém do Pará, paramos na casa dele. E ele dizia: "Tá tudo com sarna, escabiose, né?" Sarna, conhece? Sarna. Doença de pele. Não para de se coçar, fica se coçando. Marca, fica marcado. Até apareceu uma foto aí, uma marca de sarna. Fica... Moleque, velho, tudo. Cachorro. Escabiose o nome da doença. Mas enfim... O Manuel Ayres foi meu companheiro também. Girley não falou nele?DENT: Não sei. O professor Salzano também. Sim, sim.
ROCHA: Ele ficou muito amigo do Girley também. Ele ajudou ele aqui, levava
ele pra lá e pra cá. O Girley, né?DENT: E enquanto vocês estavam nas aldeias, fizeram algum, deram alguma
00:28:00atenção médica também enquanto estavam lá?ROCHA: Eles? Sim. Acho que a ideia do Manuel Ayres era essa, Salzano quando
levou o Manuel lá, e quando esse cara, acho que é o Egan não sei o quê. Acho que é... Exatamente essa, né? Fazer um exame clínico e coisa. Tinha, sim. Tinha exame médico, sim.DENT: Lembra um pouco de como era a parte do trabalho deles nas coisas médicas,
o que que eles faziam ou como funcionava?ROCHA: A mesma coisa. Tudo junto assim, era numa sala grande. E eu via o
Salzano trabalhar ali. Via o Manuel Ayres trabalhar aqui. O Girley tava do meu lado, trabalhava tudo junto. O grupo era o mesmo, né? Chegava uma família, era atendido. É como estar num supermercado, vai prum balcão aqui, um balcão... [Risos]DENT: [Risos] E aí eles... Quando chegaram no ponto do médico, quais eram os
procedimentos que o médico fazia?ROCHA: No caso das... Tem muitas coisas. As crianças, era diferente dos
adultos, eu me lembro que o Manuel Ayres medicava. O outro não medicava. Mas dor de cabeça ou febre, essas coisas, geral... Eu não me lembro de ter chegado uma pessoa muito doente lá ou casos de dor forte, tal. Normal. Gripe. Diarreia. Eles tinham muito diarreia. Esse é o lado cômico da história, porque a gente dormia em rede, eu dormia, assim, com a rede assim, por exemplo, e o Girley dormia aqui numa rede, ali o Salzano. E aonde a gente examinava, ficava... A 00:30:00gente botava a rede do lado, ficava tipo um salão aqui no meio. Então aqui a gente fazia os exames e tal. E eles ficavam ali. Ele é muito "cestuoso", muito desconfiado, pra ficar, ficava meio encostado assim. De repente um se soltava do grupo, ia lá, sentava numa rede, deitava numa rede das nossas. E é ruim, porque... a higiene dele é péssima. Então ele ficava enrolando na rede, deitado... Aí, quando eu via que tinha um cara na rede [inaudível] dividia, tirava a rede, dividia, ele estava com o Salzano, o Girley, na minha não! [Risos] Uma vez o Girley cozinhou um ovo, acho que te contei isso, né.DENT: É, que o, o...
ROCHA: O cara tava... Espirrou, que nem eu fiz agora, botou a mão aqui e
espirrou, um índio, Cremoro, o nome do índio, Cremoro, e... Mais velho, também, assim, mais velho que o Raoni. Eu comi o ovo frito da mão do Cremoro, aí o Girley foi lá no [inaudível] e botou o ovo na mão dele, assim, "Ah, isso é ovo frito, é?" Ele pegou o ovo, rasgou pela metade e deu metade pra mim comer. Tinha recém-espirrado.DENT: [Risos]
ROCHA: Tive que comer, né.
DENT: [Risos] Ele era cacique ou liderança?
ROCHA: Não. Não, era um chefe de família, o Cremoro. Acho que ele era um
cara importante assim como o Raoni. Não era um cacique. Geralmente eles têm quatro, cinco ministros, vamos chamar de ministros. Se os ministros fossem que nem eles nós tínhamos um Brasil muito melhor. E que comandam um grupo de família, comando um grupo de pessoas. São líderes, na verdade, naturalmente 00:32:00surgem em coletividades. E lá tinha o Cremoro, tinha o Raoni... Nós tínhamos que subir um morro para ir num grupo que estava lá em cima do morro tal, e eu jogava futebol naquela época. E eu tinha uma lesão crônica no tornozelo. O tornozelo era sempre inchado, sempre, sempre, sempre, sempre. E dessa ida lá pro morro, eu torci o tornozelo. Quer dizer, machuquei, subi no morro. E não tinha [inaudível], passar coletando dados lá em cima, no grupo que estava lá em cima, é... Kayapó. E aí no outro dia não saí da rede, fiquei na rede, deitado na minha rede. E aí dois índios pequenininhos ficavam me olhando da porta, assim. Um bicho estranho para eles, né?DENT: [Risos] Você deitado, é claro. Claro. Não, sempre [inaudível]... Uhum.
ROCHA: É. De roupa, né. De roupa, claro [risos]. E eles ficaram me olhando,
eu me lembro no marco da porta um pequenininho assim e um grande. Mas é, a gente não tinha instrução de não falar, de fora do serviço não puxar conversa, que podia ser mal interpretado e coisa. Foi no Kayapó? Não... Foi 00:34:00uma aldeia Yanomami, que tinha um avião da FAB... Tinha dado uma pane no avião da FAB e ele fez uma aterrissagem forçada ali no Kayapó, grupo Kayapó, Txucarramãe... Agora estou na dúvida se era Kayapó ou Yanomami. E [inaudível] tinha soldado. E eles iam para as aldeias das índias, dos índios, né. Sei lá o que é que faziam, mas iam. Então isso é uma coisa que também tinha que cuidar, não podia usar arma para não atrair coisa. Porque já conheciam algumas coisas.DENT: Isso foi uma sugestão do professor Salzano ou era dos chefes dos postos,
da FUNAI? De não interagir muito com...ROCHA: Isso aí o Salzano, quando nós chegamos [inaudível] que é cuidar, é
um grupo alienígena, eles são guerreiros, a gente é estranho para eles, e diferente. Nós é que somos diferentes, eles não. Eles são eles. Nós somos diferentes deles e nós chamamos atenção deles. Tem que cuidar para não ofender, não... É uma coisa que tem que ser cuidada. E ali já tem o Vilas Boas ali, parece, também. Mas enfim, a gente via os caras saírem do avião e 00:36:00passar ali por cima, soldado mesmo. Não sei se se vendia ou não. Não sei, mas o fato é que era uma coisa... Eu acho que era Kayapó, sim.DENT: Aí durante esse tempo assim nas aldeias, alguma vez teve alguma
cerimônia, algum ritual que vocês participaram, observaram?ROCHA: Teve. Teve um velório. Também não sei se é pro Kayapó. Eu acho que
é Kayapó. De uma velha, parece [inaudível] E a coisa é a seguinte: o corpo estava colocado em cima das árvores, no topo das árvores, porque eles acreditavam muito que o corpo fosse descarnado pelas aves de rapina... Essa era a notícia que nós tínhamos, e estava lá o corpo lá em cima, parece. E depois, quando tivesse descarnado, esse corpo era descido e o osso era triturado. Eles tinham umas coisas assim, tipo panela, que era madeira, madeira de árvore, tronco. Era socado e fazia uma sopa e eles acreditavam que o espírito daquela pessoa passasse para quem tomasse aquela sopa. Essa foi uma 00:38:00história que eu ouvi lá. Se é mentira eu não sei, mas foi um índio mentiroso lá que me contou. Isso é uma coisa que me chamou a atenção também. E também tinha uma festividade que nós não assistimos, que era o baile, a festa de debutante, pode ser, festa dos 15 anos das gurias. Dos guris também.DENT: Sim. Uhum.
ROCHA: Então tinha um lugar aberto, sem o telhado, que tinha a tal de festa
dos debutantes. Nós não assistimos a festa, nós sabíamos que existiu e existe. Então todos jovens solteiros, 14, 15, 13 anos, se reuniam nesse lugar para namorar. E se acasalar. Se por acaso a mulher engravidasse, casava. Se não engravidasse, voltava no ano seguinte, na mesma festa. Algo desse tipo.DENT: Mas vocês não participaram...
ROCHA: Não.
DENT: ...desses rituais, só sabiam que estavam acontecendo por coisas que
pessoas comentaram.ROCHA: É. Bebiam também a banana, por exemplo, socavam a banana e o caldo,
cana de açúcar, tinham cachaça, mas não era cachaça, e eles tomavam. Tomavam o caldo de banana.DENT: Esses três coisas eram todos nas comunidades Kayapó? Ou não lembra?
ROCHA: Isso que eu te contei? É. Eu não sei se é Kayapó ou Yanomami, mas eu
acho que é Kayapó.DENT: Quando vocês foram... é... [telefone toca] no caso dos Kayapó, levaram
um antropólogo social?ROCHA: Ah... Não.
DENT: Quem ia? Lembra quem estava lá no trabalho de campo do...
ROCHA: Napoleon?
DENT: ...do Kayapó?
ROCHA: Não, não tinha. Tinha o Manuel Ayres, que era médico, o Salzano e
eu. Não tinha um antropólogo social. Não tinha. 00:40:00DENT: Uhum. Mas no caso dos Yanomami o Napoleon Chagnon foi.
ROCHA: Foi.
DENT: E ele já falava Yanomami naquela época?
ROCHA: Não.
DENT: Não. Ainda não? [Risos]
ROCHA: [Risos] E é gozado, né? Estava lembrando das tiradas dele. Depois nós
tivemos juntos em Belém do Pará uma semana. Conversando e vendo os dados, né? Conversando... Aí conversei um pouco com ele. Ele é de Ann Arbor também, né?DENT: Ele... Sim, ele fez o doutorado dele em Michigan.
ROCHA: É. Mas é Kayapó, sim. Acho que Kayapó. Não, não tinha. Não
tinha. Por isso que eu estou, te conto assim... Acho. Como acho também que os soldados faziam. Tudo de ouvir... De ouvir cara falar, né?DENT: Uhum.
ROCHA: Não tinha ninguém que fazia. Era uma pena, porque tem muita coisa que
se perde aí, né? Se perdeu.DENT: E no caso dos Yanomami, como era a colaboração com o Chagnon? A
convivência, o trabalho...ROCHA: Olha... Ele ficava junto, porque... O Neel, que estava junto, né? Nós
fomos em três aldeias diferentes. O Neel, o Neel centralizava muito o exame, análise, a coleta nele. E eu ficava mais separado. E eu via o Neel e o Salzano juntos, como se os dois tivessem uma área diferente, cada um pega uma... E o Napoleon estava ali, Chagnon estava ali também. Então, na verdade, eu acho que cada um pegava numa parte, um grupo e eu sei que ele é antropólogo físico, social. Mas eu não assistia. Sim as perguntas que o Salzano fazia, e o Neel ficava [inaudível]. Tu conheceu o Neel? 00:42:00DENT: Não, ele faleceu antes de eu entrar no campo da história da ciência.
ROCHA: Uma pessoa fantástica. E a mulher dele também. Foi fantástico
comigo. Porque eu fui casado, lógico, com meus três filhos, né? Que eu tinha na época. E a quarta nasceu lá. Ele foi pagar um hospital, um médico... Tinha um tal de mister Mason, que era secretário geral do departamento lá. Tinha uma moça lá embaixo. Será que morreu também? Como é que chamava? Karen. Karen [Memiker, dúvida]. Ela trabalhava com Arthur Bloom. Fazia citogenética médica, eu acho. E tinha sessões de aconselhamento genético. Que eu assistia, que eu queria fazer quando eu voltasse pro Brasil. Então eu assistia, algumas vezes. E a Karen Memiker fazia o cariótipo. Ela foi muito querida comigo também. Tinha um monte de gente que me fez bem lá.DENT: Enquanto vocês estavam fazendo o trabalho nas aldeias, alguma vez os
índios solicitaram coisas? Ou ajuda com alguma coisa? Ou...ROCHA: Não. Não. Pra mim, não. Até porque a gente ficava afastado,
né? No caso dos Kayapós, por exemplo, era longe da aldeia. Uns 500 metros da aldeia. Então não... Calmo, calmo, tranquilo. Parece que com os Kayapós, 00:44:00tinha uma briga, guerra, entre eles. Essa era uma notícia que correu uma noite lá, que eles estavam em briga. Geralmente é por causa de mulher e de criança. Eles roubavam muita criança também. Mas não... Nunca, nunca aconteceu isso.DENT: Eles tinham uma briga então entre os grupos?
ROCHA: É. Eles estão sempre em guerra, na verdade, né? Por isso, por
aquilo. E parece que tinha um grupo próximo ali. Não sei se era Kayapó, que estava em briga com esse grupo que nós tivemos. Txucarramãe. Mas não aconteceu nada nunca, não teve nada.DENT: Então você sabe quantas viagens de campo você fez? De trabalho com indígenas?
ROCHA: Não.
DENT: Não? [Risos] Não dá para contar, não? [Risos]
ROCHA: Não. Não. Não. Na verdade, eu comecei por lá e depois eu fiz aqui.
Quando eu voltei, eu fiz Rio Grande do Sul, quatro, cinco aldeias. Nessa caminhonetezinha aí. Quatro, cinco viagens. Nonoai, Guarita, Cacique... Quatro aldeias. Kaingang e Guarani. Depois eu fui ao Paraná também. De ver Kaingang e Guarani. Mas tudo depois disso aí. Minha primeira viagem foi para Kayapó. Pro Xingu com o Salzano. E Manoel Ayres. Foi a primeira. Foi um grupo só. O grupo Txucarramãe. Aí nós pegamos o avião, viemos, voltamos a Porto Alegre, 00:46:00análise e tal. Aí o Neel veio pro Brasil, e com a chegada do Neel, teve essa viagem com esse avião da FAB que tu tem aí. Nós fomos lá para Roraima. E lá, nós fomos em cinco aldeias. Tototobi, Surucucu... Aí com o Neel. Aí fomos em cinco lugares diferentes. Só Yanomami. Foi só. Foi só o que eu fiz. Aí eu voltei a Porto Alegre, analisei meus dados, fui vinculado para aprender o teste Mahalanobis no computador. Aprendi. Botei meus dados no computador. Na época, o computador IBM1130. Deste tamanho assim. A leitora de cartões era assim. Depois impressora, depois não sei o quê.DENT: Era tudo um quarto, né?
ROCHA: Uns quadrados grandes.
DENT: Uma sala só para o computador.
ROCHA: É. Uma sala grande. E lá nos Estados Unidos é que eu peguei uma...
Eu nunca, não fazia. Com o Spielman. Uma bola de 360. Mas... [inaudível] Passei trabalho. Fiz força, mas eu tive a recompensa, né?DENT: E assim, vendo para trás... Lembra como era a sua perspectiva, o que que
você pensava sobre os indígenas antes de ir? Pela primeira vez na aldeia?ROCHA: Eu só sabia que tinha índio por causa da história do Brasil. Tupi
00:48:00Guarani... Esses índios daqui não é, não, nem considerava índio. Para mim, era algo fantástico, estar no meio do mato lá. Da selva amazônica, tal e tal. Então... [inaudível] Era uma coisa seríssima. Mas é uma experiência que é incontável, não dá para tu definir... Porque é uma coisa tão diferente, uma vida tão diferente, um povo tão diferente. Não é como sair de Porto Alegre e morar em Michigan, ou Porto Alegre e morar na Bahia. Não. É morar em outro planeta. É outro planeta. E quando tu vê aquela gente toda lá, vivendo bem... Porque eles não passam fome, não... Doenças tem até menos que a gente, na verdade. Eu acho que eles têm menos doença... Tinham.Então, então tu está num país assim. Porque é um país diferente. De
repente, tu vê uma anta na beira do rio Xingu. Tchibum. Aí eles pegam uma canoa. E vão caçar a anta, e caçam a anta. Vão caçar isso, vão caçar aquilo, vão pescar. As mulheres trabalham que nem umas loucas. Carregando lenha, fazendo fogo, com dois filhos agarrados nelas. Enfim. É uma coisa... Claro que a gente... É uma coisa que foge da nossa alçada, do nosso controle. Mas tu ver que existe isso, que é verdade. Quando tu dorme e tu acorda no mesmo 00:50:00lugar e é verdade, não foi sonho. Tu está no meio dos índios mesmo.E preocupação também, porque eu não fiquei tranquilo lá o tempo todo. Até
porque tinha esse troço de guerra. De repente, eu vou morrer com flechaço, né? [Risos] E guerra pra lá e pra cá. E doença, malária, e outras doenças de selva, que tu pode contrair, claramente. Claro, eu não tomava água, aquela. Mas sempre tu corria um risco, e outras doenças. E até um índio louco, né? Mas é uma coisa, Rosanna...DENT: E depois, voltando, depois das viagens, de fazer esse trabalho, mudou
para outros temas seu trabalho. Não ficou trabalhando com a questão dos indígenas. Mas essa experiência teve algum impacto na maneira que você entendia, assim, notícias, o Brasil, assim, a...ROCHA: Completamente. Muito depois é que, como se diz, caiu a ficha, né?
Porque quando eu voltei, eu era mocinho também, mocinho em termos de idade. Eu voltei pensando em fazer coisas aqui que eu consegui fazer. Quando estive lá em Ann Arbor já fiz estágio e coisa, aproveitei. Então, na verdade, isso aí foi um filme que passou na minha vida. Eu encaro como uma coisa, assim, um filme. 00:52:00Quando eu vejo Girley ali no... das coisas. E quando ele falou no telefone comigo... Não tinha visto, mas enfim, é um filme que me passou na minha vida lá atrás. E que eu fiz o que eu pude, sair como eu pude também. Pra mim, foi ótimo. Ninguém me tira isso, né? Da minha visão.DENT: Você tem histórias preferidas que gostou de contar para seus filhos,
para seus amigos sobre essas experiências?ROCHA: Não, assim... Não, não tem uma história especificamente, porque...
Como é que eu vou te dizer? Porque o meu dia a dia era ocupado todo o tempo, né? Eu acordava 7, 8 horas da manhã e ia até o sol ir embora trabalhando. Então, assim, não, não tinha uma história específica assim. Tinha as coisas engraçadas que ele passava. Isso aí tem dezenas de histórias engraçadas. Como o índio que sentou na minha frente... Tem um índio, um chefe deles. Um Kayapó. Alguém tinha falado que tinha ataque de tigre, de leão, essas coisas, na selva. E quando vinha a noite, o luar, a luz se escondia atrás das nuvens... E quando chegava, a lua aparecia, aí vinha um tigre ou coisa... [Risos] E fazia assim para me assustar como se fosse um tigre, entende? Coisa desse tipo. [Risos]DENT: [Risos] E você achava que era algum animal?
ROCHA: Não, não, não. Não. Era ele, ele estava conversando comigo ali, ele
"ahhh". Digo, brincar comigo, né? Como aquele que também me abraçou e... Esse 00:54:00foi Yanomami. Me chamou de jerimu. Jerimu. Aí o cara me disse: "muito amigo, parente". E que ele se orgulha de ter como amigo. Ele era um indiozinho pequeninho assim, Yanomami é pequeninho, né? Forte. Nunca mais eu vi ele, né?DENT: E como eram as perspectivas dos familiares? Amigos? Assim, quando você
voltava dessas viagens e contava sobre o que que você fez.ROCHA: Ah, eles queriam ver, saber que que é. Onde é que está, como é que
é o índio, ele anda pelado, anda nu ou não anda nu. Faz isso, faz aquilo. Não tem novidade nenhuma, tudo é igual a gente, igual. Só não de roupa. Não tem nada. É normal. Mora com a família, tem filho. Tem baile de debutantes. As gurias debutam, os guris, se engravida, casa. Aí o ano que vem, volta para arrumar um parceiro de novo. Os velhos não são enterrados nem em cima, como os ossos dos velhos aqui embaixo, dessas coisas que eu ouvia do Villas Boas também. E claro, tinha slide, né? Passava. Eles gostavam de ver os slides dos índios, né? É uma coisa boa. Era uma coisa boaDENT: E como eram os outros que estavam no campo com você quanto, assim, à
atuação no campo... Se eram diferentes, assim... O professor Salzano, por exemplo, como comparava o professor Salzano da aula e do trabalho de campo.ROCHA: Ah, muito diferente, muito diferente. Tu só conhece ele na aula, né? Tu
00:56:00viajou com ele alguma vez, não?DENT: Não, nunca.
ROCHA: O Salzano, eu posso te dizer sem medo de errar, foi o cara mais...
Pessoa que não é meu parente, não é meu pai, não é... Mais séria que eu conheci. Sério. Com sério, eu estou dizendo assim, definindo da seguinte forma: um cara correto. Incapaz de um julgamento errado. Bem incapaz. Incapaz de cometer uma injustiça. Trata todo mundo com humanidade, com educação. Na aula, um sujeito seríssimo, não brinca na aula. Ele foi dois anos meu professor. Não, não brincava. Mas depois da mesa dele, a gente brincava, entende? Na vida fora da aula... É um guri. Para viajar junto, gozadíssimo, divertido, topa todas as brincadeiras, colega, amigo. Uma pessoa fantástica. Fantástica, o Salzano. Eu respeito ele muito, muito, muito, muito. Ele tem dez anos mais que eu...DENT: Incrível como ele segue trabalhando, né? [Risos]
ROCHA: É incrível. Incrível. E o Girley tu conheceu bem, né? Esse aí que
tu viu, que te trouxe aqui. Ele achou direto?DENT: Achou. [Risos]
ROCHA: E aquela noite, como é que tu foi embora?
DENT: Ah, eu fui de ônibus. Voltei...
00:58:00ROCHA: Conseguiu?
DENT: Sim, sem problemas.
ROCHA: É mesmo?
DENT: Uhum. E quando você fez trabalho de campo aqui no Rio Grande do Sul, ia
de caminhonete com...ROCHA: Girley.
DENT: Alguém mais ia com vocês?
ROCHA: Não. Não. Até porque esses índios daqui, muito diferente. Primeiro,
eu fui lá, depois vim aqui. São completamente diferentes dos índios de lá. Eles são mais parecidos com nós, conosco. Do que com eles lá. Inclusive, os hábitos alimentares e domésticos. São muito parecidos. Claro, são "domesticados" entre aspas por nós, né? Então, bebem muito. Esses daqui. Vivem mal porque bebida é boa até um ponto, depois ela vira, né? E esse índio bebia muito. E brigas e cachaça e facada e morte. Sabe? Miséria. Falta de dinheiro. Então, eu ia com o Girley, sim. Atolava o carro. Estrada não tinha asfalto, era barro, a caminhonete atolava, tinha que empurrar a caminhonete, barbaridade.DENT: E...
ROCHA: Eu não sabia que tinha morrido a mulher dele. Eu perguntei por ela,
lógico, né?DENT: Claro.
ROCHA: Disse: "E a Neiva?" "Ah, a Neiva morreu faz uns 10 anos..." "Sinto muito."
DENT: Sim. Mas acho que desde esse tempo que ele não está muito em contato com
as pessoas da Genética.ROCHA: Ele não está, né? Ele se aposentou logo que terminaram essas viagens.
01:00:00Acho que depois dessas do Yanomami. Porque o Neel pagava ele em dólar por dia. 50 dólares por dia, por exemplo. Era um dinheirão. Ele comprou umas terras aqui na volta. Eu acho que ele mora num sítio. E cria cavalo, cria vaca, não sei.DENT: É. Ele ficava lá um tempo e depois voltou para Porto Alegre de novo. Mas
impressionante, a mãe dele vai fazer 100 anos nessa semana.ROCHA: A mãe dele?
DENT: Sim, ainda está viva e vai fazer 100 anos. Vai ter aniversário de 100
anos. [Risos]ROCHA: Não sabia.
DENT: [Risos] Sim. E agora eu queria perguntar um pouco sobre também... Fazendo
trabalho de campo, qual era a relação com as pessoas que trabalhavam nos postos da FUNAI, que estavam...ROCHA: Eu não tive nenhuma relação com... Até porque, assim, eu presumo que
o contato era o Salzano que fazia. Com o chefe e por correspondência. Combinava tudo. E sempre tinha, nas aldeias que nós fomos. Sempre tinha missionários. Essas religiões aí que tem missionário. E tinha até um voo... Um avião que a gente pegou que era de um missionário de Brasília. Então eu não tinha contato com ninguém. Aqui no estado, é a FUNAI, né? É político, já está na mão do governo. Pede, pega autorização. Também, vai chegar lá, não faz contato. 01:02:00DENT: Então não tinham postos de...
ROCHA: Não. Não. Sabe que ali tem escritório da FUNAI? É aquele cara que
dirige o acampamento aqui. Então eles que vão contigo. Comigo não.DENT: E com os missionários, como era... Eles ajudaram com a tradução, alguma coisa?
ROCHA: Eles ajudavam, sim, eles ajudavam. Eu me esqueço, eu me esqueci de
muita coisa. Teve um dia que uma aldeia que o escritório dos missionários era na pista. Do lado da pista de avião. Então eu me lembro bem... Era uma família até. Duas senhoras e um cara missionário. Conversamos muito, ajudaram. Eles deram auxílio. Não passou disso, um dia, uma tarde, uma coisa assim. Um significado menor.DENT: Sim. E aí, depois... Assim, na parte profissional, essa experiência de
campo teve alguma influência na trajetória profissional que você teve depois?ROCHA: Olha, Rosanna, tudo que tu faz na vida. Tudo. Desde que tu tem 10 anos de
idade, tudo que tu faz, incorporam na tua vida. Na tua maneira de ser. E de certa forma, influencia pra lá ou pra cá, de acordo com o que tu conduz. Mas claro que é como se tu recebesse uma enxurrada ao longo da tua vida. Eu tenho 75 anos, então ao longo da minha vida, já vivi bastante, até demais. Eu 01:04:00acumulo coisas que eu boto no lugar e não uso mais ou uso pouco. E outras coisas eu uso muito, bastante. E me servem muito. Quer dizer, essa história aí dos índios foi uma coisa que me ajudou muito. Até ver que a vida não é isso que está aqui. Eu sou um privilegiado, eu tenho uma boa casa, uma família. Tem gente passando trabalho, né? Tem grupo de pessoas que não conseguiram ainda sair de um estágio de vida como os índios, né? Claro. Vivendo como eles querem, né? Mas os daqui do Rio Grande do Sul já vivem muito marginal, a beira do horrível, né? Então a gente vai aprendendo... Ninguém é melhor que ninguém. Que nem time de futebol, cada um faz o seu. Tem o que faz o gol, outro que agarra bola, um que bota... Cada um faz a sua parte. Se for assim, [inaudível] Encarei essa vida como um jogo de futebol. Sem falar no Brasil, que não presta.DENT: [Risos] Ótimo. Alguma história mais que gostaria de contar ou outra
coisa que lembra da experiência de campo?ROCHA: Não... As coisas mais marcantes, era a chegada. E depois a saída.
Porque a chegada é aquela coisa de novidade. Eles cercavam o avião da gente. Ajudavam a descer as malas, alguns, e depois... O dia a dia e tal. E na saída, era a sensação de que tu tinha que sair da selva naquela hora. Por quê? Porque nesses casos aí do Yanomami, Kayapó também, nós estávamos no meio de 01:06:00uma selva, né? Não é que nem aqui, em Nonoai aqui a 15 quilômetros de Porto Alegre. Que que significa estar no meio da selva? Um aviãozinho pequeninho como tu tem, foi com três ou quatro pessoas, desceu lá no meio do mato... Aí tu olha pros lados, é árvore de dez, quinze metros de altura... Com o Xingu na frente. Esse aviãozinho que te deixou lá, volta para a cidade grande. E promete voltar dentro de uma semana. Se esse aviãozinho cair quando for pra lá, ninguém fica sabendo onde nós estamos.Essa história me assustava. Pois, se esse avião cai agora, Girley? Eu sempre
ficava com o Girley conversando na hora do avião, porque não cabia todo mundo. Fazia duas viagens. Pega o avião e leva o Salzano, não sei, o Neel lá para Belém do Pará ou pra sei lá onde. Para Roraima. E vai voltar pra cá? Numa viagem de noite? Para nos pegar aqui? E se ele cair? Piloto morreu... Salzano... Nunca vão nos achar. Eu pensava isso. Às vezes, né? Mas isso não era um fato bom de pensar, uma coisa boa de pensar, não. E às vezes a gente ficava cercado deles. Os índios ficavam na nossa volta, assim, esperando o avião voltar. Mas foi uma fase da minha vida. Eu quero lembrar a idade que eu tinha quando eu comecei a fazer isso. Meu deus. A minha memória para trás. Pra frente não pode ser memória. Pra trás, ela não tem compartimento. Eu não sei definir o que que era 1972 pra trás ou pra frente, sabe como é? Eu não 01:08:00consigo definir isso lá atrás. Mas de qualquer maneira, isso aí devia ser 73. Não... Eu estive nos Estados Unidos em 72. 68, 69. Eu tinha 30 anos. Eu tinha 30 anos, 29. Eu já tive 29. Eu tinha cabelo. Tu viu? Tem testemunho.DENT: [Risos] Eu vi. Eu vi as fotos. [Risos]
ROCHA: Minha testemunha. É a única testemunha que eu tinha cabelo.
DENT: Ótimo, professor. Acho que essas são as perguntas que eu preparei,
então... Se depois, eu penso em outra coisa, eu vou entrar...ROCHA: Eu fui muito feliz. Eu fui muito feliz na minha vida. Em toda a minha
vida, fui muito feliz. Casado, os filhos, trabalhar na Genética, viajar pros índios. Depois fazer aconselhamento genético. Eu atendi 850 famílias num ano em Porto Alegre. 80 família por um ano não, em 10 anos. 80 famílias por ano. Por ano. Que foi uma coisa que me enriqueceu muito também. Mas é outra coisa de estar ali com os índios, né?DENT: Não, claro.
ROCHA: É outra resposta, é outro sentido da vida. E eu tive privilégio de
fazer isso, ganhar salário para fazer isso. Sustentar minha família com esse tipo de trabalho. Não é um privilégio? Não precisa pagar nada para fazer. Viajei, conheci os Estados Unidos. Conheci o Neel, fabuloso. Pessoa 01:10:00fabulosa. E a mulher dele também. Enfim, e o Salzano foi muito meu amigo. Ele é meu amigo até hoje. Eu sei que ele sente por mim, e eu sinto por ele uma grande admiração, assim. Uma coisa que não tem jeito de medir, de aferir. Não tem. [pausa] As conversas que a gente tinha nas pistas de aviação. De noite. [inaudível] aberta no meio do mato, né? As conversas...DENT: E por que foram lá na pista? Para poder caminhar tranquilamente pela noite?
ROCHA: Sim. Pela noite. E se viesse alguma coisa maior, tu via, né? Cobra,
não. Cobra tinha em todo lugar. Mas se um tigre me aparecesse, se desse para correr, tudo bem. Mas não era assim também, é porque nesse lugar aí, a gente morava praticamente na beira do Xingu, aquela sacada era na beira, era 10 metros para frente estava o Xingu. E 20 metros para trás estava a aldeia dos índios. Então a gente saía e a pista estava lá atrás. Então a gente saía, caminhava até ali, olhava as estrelas, contava uma historinha de estrela, depois ia dormir. Cansado também, né? O dia era cansado. 01:12:00Girley também é outra figura. Nunca mais vi o Girley. Depois que... Porque a
minha vida profissional, eu posso dividir até na tese de doutorado, que foi em 72, 71 a viagem aos Estados Unidos foi 72. Lá fiz análise da minha tese, dos dados. Os Spielman junto comigo e tal. E depois dessa data pra cá, 72 pra cá, 32 anos...Eu vim pra cá. Voltei pro mundo. E fui ser diretor do instituto. Eu tive uma
função administrativa. E aí me perdi do Girley. Quer dizer, sabia que ele estava ali e tal, [inaudível]. Assim como os outros também. Então tive uma outra atividade dentro da minha formação. Que eu também gostei muito. Então eu não vi mais o Girley. Não soube mais da vida dele. Tu fica sabendo quando morre um, né? Aí esse ano morreram dois colegas nossos. [inaudível] O Israel, que foi muito meu amigo. Companheiro de sala. Ele estava assim e eu ali. E a Margarete foi muito querida, minha amiga também. Nós três trabalhávamos, assim, numa sala. Eu entrei, o Israel já estava ali, Margarete estava aqui. Eu entrei. Nós três ficamos lá até acabar. Juntos, né? 01:14:00 Então foi uma coisa muito triste pra mim. Isso esse ano. E o Salzano também, porque o Salzano era o orientador da Margaret e do Israel também. E o Girley também era desse grupinho aí. E daí tu fica "ah morreu a Margaret, morreu não sei quem"... Mas enfim...DENT: Bom, vamos ver se vai ser possível em setembro... Para fazer uma pequena
reunião, um encontro, né?ROCHA: Dos sobreviventes.
DENT: Das pessoas que me ajudaram com o projeto que vou estar apresentando,
contando. Eu aviso com tempo e aí se dar para ir, seria ótimo. Acho que o Girley vai tentar ir, o professor Salzano vai estar lá, então...ROCHA: Tá bom
DENT: Vamos... Vamos ver se... [Risos]
ROCHA: Tá bom... [inaudível] Setembro, tu acha, é?
DENT: Setembro, uhum.
ROCHA: Ah, dá tempo. Tu vai ficar aqui até quando?
DENT: Eu vou confirmar a data. Até o final de setembro. Uhum.
ROCHA: Ah, tá. Tá.
DENT: Pensa ir lá no final do tempo que estou aqui.
ROCHA: Tá. Tá bom.
DENT: Ótimo, professor. Nossa, muito obrigada pelas...
ROCHA: Não. Eu não sei se é isso que tu queria.
DENT: Não, é exatamente isso. Assim, as reflexões sobre as experiências no
campo... A importância que teve na sua vida. É exatamente isso.ROCHA: Tá muito bom.
DENT: Então, muito obrigada. Se encontro outras perguntas, eu vou entrar em
contato de novo. Podemos conversar de novo.ROCHA: Tá bom, tá bom, tá bom. Tudo bem. Tá bom.
DENT: Sim? Tá. Muito obrigada então.